A língua é poder, está nas relações de poder: numa arena de conflitos(1). E é com o peso das leis que a padronizam que ela cai sobre os ombros dos professores. O que dizer do professor de língua portuguesa. Entre regras e limites, o que pode e o que não pode, o que é certo e o que é errado, a língua padrão torna-se a materna: ora mãe boa, ora mãe má. Nas andanças da vida, quem nunca ouviu esses dizeres: isto é um crime, isto é um insulto à língua portuguesa, à boa língua portuguesa! Em sala de aula, a língua oficializada pelo poder é também a madrasta dos contos de fada, recusando os filhos considerados ilegítimos: essa palavra que você está falando aí não existe.
Ora, a língua é um código, uma linguagem em sistemas, mas ela não está acabada, fechada, a não ser que esteja morta. Estando viva, a língua é um ato de criação ininterrupto, (re)invenção. E é experimentando aprendizagens com as outras pessoas, que nos tornamos possuidores de um saber lingüístico, de uma prática social. O que possuímos da língua, na verdade pertence a todos os falantes, a todos os praticantes dessa língua.
Como diz um provérbio africano, uma criança não se cria sozinha; é preciso uma comunidade inteira para criá-la. É na comunidade, dialogando com os outros, que nos tornamos falantes de uma língua materna, possuidores de uma linguagem criativa e dinâmica, herdeiros das ladainhas, das parlendas, das folganças, das marujadas, das vozes que tecem toda cultura oral nascida no seio da coletividade.
Infelizmente, toda essa linguagem ainda tem ficado à margem das gramáticas e dos livros didáticos, tem ficado até mesmo à margem das salas de aula. É que às vezes esquecemos que quando o aluno aparece pela primeira vez na escola, ele já traz consigo um código lingüístico comunitário: palavras geradas e geradoras, nascidas entre jogos e brincadeiras, entre a televisão e a conversa fiada, entre a música e a festa, entre os sons e os ensaios. Entretanto, todo esse conhecimento ainda poderá ser visto senão como linguagem desarticulada ou inexpressiva. Caímos, conscientemente ou não, no canto da sereia do "gramatiquês". E nos isolamos na falsa segurança dos livros-língua.
Não estou aqui negando a importância da gramática normativa e nem querendo decretar morte ao livro didático: cortem a cabeça! Mas é que precisamos questionar, desconfiar das aparências e ter coragem para intervir. Entender que o professor não precisa saber tudo, principalmente o mais culpado entre eles, o professor de português. Freud explica. Lacan também.
Muitas vezes decorei enormes listas de coletivos, preposições, verbos: todas as conjugações, os modos e tempos verbais, os verbos irregulares, os defectivos... Decorava por medo: não podia errar diante dos alunos ou negar a mãe-língua. A minha alegria estava em vê-los admirados com todo o meu saber: Eu sabia tudo e eles não sabiam nada. Jamais poderia confessar a eles que sabia tão pouco sobre aquela interminável lista de coletivos, e que se me perguntassem no dia seguinte o coletivo simples de pássaros, poderia já não lembrar ou me confundir. Culpa, prepotência, medo e vergonha: (res)sentimentos comuns ao professor sabe-tudo - carregando em si o temor de uma provável posição de desvalia: se não sabe, não teve ter tido uma boa formação.
Eu tinha um vizinho que quando me encontrava no elevador, toda vez perguntava: qual o significado da palavra tal? Como se escreve a palavra tal? Você, professora de português, não sabe! E eu me sentia muito culpada por não saber. Até que um dia eu percebi: não sou dicionário, não jurei fidelidade à gramática, não preciso saber tudo, falar e escrever certo e melhor porque sou professora de português. É evidente que uma certa técnica ajuda, mas não é o fundamental. Descobri que ser falível me faz ser uma professora aprendiz, desonerando-me de culpas que não preciso carregar.
Aprendo na práxis que a língua é um instrumento de comunicação que precisa ser trabalhado diariamente, pois cada aluno tem seu modo de expressão, e em cada texto produzido por ele, seja oral ou escrito, haverá uma nova realidade lingüística a ser desvendada. Não posso negar a contribuição dos racionalistas, mas também já não posso continuar vendo meu aluno apenas como um mero recipiente vazio à espera de regras, códigos e nomenclaturas. Descubro com esse olhar que (des)conhecer algo pode tornar-se caro momento de aprendizagem, minha e de meus alunos. Quando não sei, proponho: vamos pesquisar? Isto estabelece entre nós um pacto de confiança: estamos juntos nos saberes, nos não-saberes, nos que-saberes e nos ainda não saberes(2). A língua também é liberdade.
1) BAHKTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Laud. São Paulo: Hucitec, 1996, p.14.
2) Esteban, M.T. Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. In.: Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
---------------------------------------------------------------------------
Patricia Porto
Artigo publicado na Revista Página da Educação, Porto, Portugal.
Link: http://www.apagina.pt/?aba=7&cat=140&doc=10479&mid=2
Comentários
Postar um comentário