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Artigo publicado na Página da Educação, Porto, Portugal: http://www.apagina.pt/Download/PAGINA/SM_Doc/Mid_2/Doc_10225/Doc/Página_10225.pdf
Artigo publicado na Página da Educação, Porto, Portugal: http://www.apagina.pt/Download/PAGINA/SM_Doc/Mid_2/Doc_10225/Doc/Página_10225.pdf
Leitura... uma coleção indefinida de experiências irredutíveis umas às outras.
Roger Chartier
Ler é sempre um encontro enigmático e labiríntico com o(s) outros(s). Por isso está na sutileza da palavra, está na riqueza dos significados. Goethe dizia que ler é a arte de desatar nós cegos. Podemos pensar a frase de Goethe num contexto polissêmico em que nós cegos podem ser os nós difíceis da vida, os nós da garganta, os nós pelo corpo; ou ainda podemos pensar em nós cegos a partir de algumas cegueiras que desenvolvemos em relação ao mundo que vivemos. Ler não é apenas decodificar os códigos da língua. É também desfazer os nós cegos de uma não compreensão sobre isto ou aquilo. É poder enxergar no fora o que vai por dentro ou vice-versa.
Podemos experimentar a vida, ler a vida, através de uma rica diversidade que está ao nosso redor: uma imagem, uma pintura, um símbolo, um ruído, uma vibração, um gesto, uma voz, uma expressão, uma lembrança, um cheiro, o cheiro da nossa casa, da nossa infância, os cheiros da nossa história... É a leitura de mundo, anterior a leitura da escrita e a escolarização da leitura. Com que habilidade líamos e lemos: fumaça, toques de tambor, pegadas, desenhos nas paredes, mudanças do tempo na coloração do céu e do mar, o amadurecimento dos frutos, os lençóis nos varais? E aprendemos a ler lendo e sentindo, observando e criticando, indagando e comungando com as entrelinhas o que transcende à primeira vista das linhas.
Muitas vezes vemos a leitura apenas a partir de um determinada ótica, correndo o precipitado risco de (pré)julgá-la como uma fuga do cotidiano, como viagem a um país estrangeiro, esquecendo que o mais surpreendente da leitura é justamente a capacidade de traçar paralelos entre a leitura e a vida que vivemos ou inventamos para viver. A partir dessa concepção, a leitura dos textos tornar-se-ia mais interessante à medida que, de alguma maneira, nos refletisse nos lançasse a outras tantas leituras intertextuais e sensoriais. Não há envolvimento com a leitura sem sentido prático. Sem envolvimento a leitura torna-se um mero dever.
Sabemos da necessidade de uma leitura mais democrática na escola, de uma leitura que provenha de um compromisso real com o exercício da curiosidade e da imaginação. No entanto, ainda poderá parecer utopia pensar numa leitura escolarizada que parta de um contexto espontâneo, no qual as leituras sejam enfim propostas e não somente impostas.
E é possível então ensinar a ler para além dos códigos? É possível viver a leitura do gosto no cotidiano da escola? Certamente não há fórmulas mágicas, não há uma receita infalível. Na escola, ler pode vir a ser experimento, descoberta ou não exatamente isso, podendo vir a ser um dos tantos deveres que levamos e trazemos da casa para escola ou vice-versa.
Quando deixamos de vivenciar a multiplicidade do olhar e inviabilizamos a compreensão das palavras que nos habitam, passamos a banalizar a nossa própria curiosidade e cegos de nós não enxergamos a curiosidade que é própria dos nossos alunos. Deixamos de intuir, levados assim pela mecanização dos sentidos. Quando não exercitamos os sentidos, eles também deixam de existir. Aos poucos vamos desaprendendo a enxergar, a ouvir, a falar, a tocar, a sentir. E para ler com liberdade, precisamos crer nos sentidos, precisamos exercitá-los. A leitura - escolarizada ou não - exige de nós encontros contínuos com os sentidos nossos e de nossos alunos. E se não é possível desescolarizar a leitura, descolar a leitura de determinadas fôrmas, pelo menos podemos tentar tornar essa prática uma ação mobilizadora, capaz de potencializar outras formas de compreender.
A compreensão do que lemos ativa nossa imaginação, nossa memória, criando e guardando passagens e paisagens de inúmeros personagens, tempos e lugares, (re) significando experiências, imergindo dos nossos sentidos as mais diversas emoções, as tantas memórias que ultrapassam o que é do acúmulo. Está «longe de ser o relicário ou a lata de lixo do passado».(1) A memória do leitor está a serviço do devir e do advir - se desloca no tempo num trânsito de mão dupla, de idas e vindas, vindas e idas.
Somos textos vivos, livros e leitores de lugares e tempos internos e externos. Somos temporais e temporários. Em nós habita o frescor do nascimento e o tempo outonal da morte. Por isso tamanha é a necessidade de sermos vistos, de sermos ouvidos, de sermos lidos e valorizados em vida. A leitura que fazemos do outro e a (auto)leitura são partes-metade de uma vontade contínua de ver e ser visto, de compreender e ser compreendido. A leitura - essa relação dúbia de entrega - habita na ambigüidade de um leitor-viajante, que não mais passivo diante do que lê, (re)inventa caminhos e lê através.
(1) Certeau, Michel de. A Invenção do Cotidiano 1. Rio de Janeiro, Vozes: 2000, p. 163.
Patricia Porto
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