Eu sei escrever.
Escrevo cartas, bilhetes, lista de compras,
composição escolar narrando o belo passeio
à fazenda da vovó que nunca existiu
porque ela era pobre como Jó.
(Adélia Prado in Terra de Santa Cruz)
“Não gosto dessa folha grande – toda branca.
Vou ter que escrever tudo isso?
Tem que escrever?”
(fala de Gustavo – 10 anos – 3a etapa do 1o ciclo)
Não é só o Gustavo que não gosta de grandes folhas em branco. Na escola, a língua como inescapável lei parece prevalecer sobre a linguagem e o desejo. (Zaccur, 2000, 122) E o nosso desejo, onde fica? Para onde vai?
Em todos os tempos, famosos escritores e compositores passaram pelo tormento da “folha em branco”. Graciliano Ramos dizia que escrever dava muito trabalho e escrever romances era muito penoso. Ao refletir sobre a “escrita” e sua função social no Cotidiano Escolar percebemos o quanto nós, educadores, nos tornamos rígidos e autoritários ao cobrar de nossos alunos “a escrita infalível” que não “má segmenta palavras”. “Se se tiver que ensinar a forma ortográfica para depois permitir que as crianças escrevam, usando somente as palavras aprendidas, isso ocasionará um bloqueio no uso da linguagem pela criança..” (Cagliari, 1989, p.122)
Uma das situações mais comuns ao se trabalhar com textos é que tudo acaba sendo motivo para o ensino de nomenclaturas. Privilegiamos o texto escrito em detrimento do texto oral. Tratamos a oralidade como uma etapa superada. O que seria dizer que o texto escrito não tem relação com o texto oral, restringindo-se então a uma soma de sílabas, sujeitos e predicados; e que se soubermos construir castelos de nomenclaturas saberemos criar textos. É evidente que devemos reconhecer o valor da gramática normativa, mesmo porque ela em muito nos auxilia na busca por uma ascensão social. Mas também não podemos cair no lugar comum do olhar o educando como um mero depósito de regras que não pensa, que não fala, que não age. Como diz Edwiges Zaccur (2000, 188): “Em nosso empenho de ensinar, sobretudo a escrita, não raro ficamos atônitos diante da resistência a um bem cultural tão precioso quanto constitutivo da nossa identidade. Afinal somos a linguagem.”
Somos a linguagem das nossas folhas em branco. Somos a voz da escola. A professora fala: “Menino, escreve aí, em 30 linhas, um dia na primavera.”. E o menino, sonhador, distraído, quer falar da chuva gostosa de verão que molha o seu rosto e o telhado da casa; quer falar do cheiro da terra, de lama encharcada nos pés e de brincar na chuva. “Menino, o tema é a primavera. Fale das flores, das cores!” E o menino que não é bobo nem nada, começa a pensar o quanto seria bom estar “fora da escola” , pegando aquela chuva de pingos grandes.
A folha em branco é sempre um desafio para o educador e para o educando , um limite a ser ultrapassado através de preenchimentos, sejam eles feitos de letras, palavras, textos, números, desenhos, gráficos e até rabiscos. Se pensarmos numa tela em branco a espera das mãos engenhosas do pintor, pensaremos também num vasto universo de possibilidades, com variadas combinações de cores, texturas e imagens, que certamente nos levarão a tecer os mais complexos símbolos visuais. E acabaremos por visualizar a obra mesmo antes de o artista começá-la, preenchendo os espaços vazios com os nossos próprios significados. Se uma tela em branco nos estimula a criar, a imaginar, a abstrair, por que não conseguimos obter o mesmo sucesso com a folha em branco? Por que nossos alunos não são estimulados a exercer a sua palavra, o seu discurso, expondo livremente suas idéias? Por que alguns alunos preferem fazer cópia das cópias dos livros didáticos? A escola pública, destinada às camadas populares, vem formando autores ou copistas? Que interesses políticos, sociais e econômicos estão por trás da “ineficiência” do bem público? A quem interessa deixar em branco a educação do nosso país? Se nossas crianças não aprenderem a dar significados às folhas em branco que teimarão em passar em suas vidas, quem as escreverá por elas?
Questionamentos que nos levam a pensar que nada nasce pronto e acabado. Um texto, uma pintura, um pensamento, todos necessitam de criação e construção. E no que diz respeito à construção da linguagem, tanto Paulo Freire quanto Freinet acreditavam na capacidade de o aluno organizar sua própria aprendizagem. Ambos deram grande importância ao “texto livre”, associando a leitura da escrita à leitura de mundo. Insistindo na necessidade, da criança ou do adulto, de ler entendendo o que está escrito, de falar e escrever seus pensamentos e organizá-los com liberdade. É através da relação dialética entre a leitura de mundo e a escrita livre que a pedagogia “humana” pode vir a intensificar o processo proximal entre a linguagem e o sujeito, agente formador da sua história social. A linguagem é fator essencial de transformação. O oprimido pode mudar sua realidade através do uso que faz da linguagem. A linguagem afetiva nos tira do isolamento, nos mobiliza, nos une e nos conforta. É impossível conceber uma prática pedagógica que não creia na linguagem amorosa, que não traga entre seus fundamentos, o valor cognitivo da afetividade.
Possibilitar aos alunos uma produção escrita que parta de um acontecimento espontâneo é produto de uma confiança incondicional na linguagem. Pois escrever é “fazimentos” . Não é com temas soltos, como “A natureza” ou “Minhas Férias”, que conseguiremos dar sentido à construção textual dos nossos educandos. Isto minimiza o caráter cognitivo da escrita, reduz a sua significância ao vazio. Quando nos bloqueamos, com algum tipo de censura ou ainda, quando bloqueamos os que nos cercam, interrompemos o fluxo criativo da escrita, interrompemos o “diálogo” e nos isolamos na inércia. Lembrando Paulo Freire, “o educador que castra a curiosidade do educando em nome da eficácia da memorização mecânica do ensino dos conteúdos, tolhe a liberdade do educando, a sua capacidade de aventurar-se. Não forma, domestica”. (Freire, Paulo. 1996, 63)
No Cotidiano Escolar a folha em branco está entre o medo e o prazer, entre os sons e os silêncios - uma linguagem feita de sussurros e berros, silenciamentos e dor. Mas aprendemos com o carpe dien que o silêncio está repleto de vozes camufladas, ventanias e preces veladas. Basta o silêncio para ouvirmos a música que quisermos. E talvez só queiramos ouvir o silêncio, e nele guardarmos o nosso som: que é um pouco de choro e um pouco de riso. Talvez seja o som do sonho da nossa criança que ainda não ousamos revelar.
Patricia Porto
Comentários
Postar um comentário