Esta crônica é dedicada ao Seu Hélio, um gentil e sensível homem de letras e livros, dono de um sebo charmoso em Miguel Pereira.
Imagem: Arte de Rua, René Magritte. |
A livraria no Brasil, de uma forma geral, é hoje uma boutique de livros. Resolvi começar logo com o pecado da injúria, lembrando a ironia tão peculiar do nosso grande autor Nelson Rodrigues que tão bem dizia: “toda unanimidade é burra”. Generalizando um tanto por mal de burrice e sem querer ofender às tantas boas livrarias que resistem bravamente à avalanche das novidades, cada vez que entro em certas duas ou três livrarias de shopping e olho aquelas mesas-vitrines com aquela quantidade enorme de livros que já foram vendidos aos milhões mundo afora, sou convidada a sentir certa náusea. Não vejo diferença ideológica entre esse tipo de livraria de shopping e a sapataria de shopping. São expostos modelos e mais modelos com muitos títulos apelativos numa orgia de temas pra lá de “best seller”. O sujeito olha, sente aquela já conhecida comichão do consumo e acaba levando para casa justamente aquele do tipo mais caro e mais sem sentido para ele, só porque a vendedora tinha dito com poderes de Juno e voz de locutora de aeroporto que aquele lhe caia muito bem. “Foi feito pra você.” “É o último dos lançamentos, você não pode perder essa oportunidade de colocar na sua estante.” E o sujeito mais consumidor que leitor, mais colecionador que leitor, acreditando no papo furado do consumo alienante, compra mais um para não ler, achando inclusive que se perder aquele exemplar último da 42ª edição ficará “out” do universo, um ser totalmente desatualizado do mundo “fashion” livresco ou do “mercado fresco dos livros”, que de frescor tem mais é a afetação das celebridades editoriais, verdadeiros caça-níqueis dos novos nichos de mercado de cores, tipos e tamanhos para todos os olhos, para todo gosto ou mau gosto. E eles pegam pesado! É coisa de mercado agressivo para o intelecto. E o que mais me impressiona é constatar na minha apoplexia ou burrice generalizada que realmente não se precisa mais saber escrever para lançar um livro no mercado editorial brasileiro. Tem muito lixo por aí. E usando de muita sinceridade, esse suicídio burro, talvez seja até um entrave saber escrever se pensarmos no público que não lê, “ops”, desculpe, no público que só consome, junta, acumula, não pode perder uma promoção e não desapega.
Outro dia uma senhora parecia ter me perguntado no elevador: “você é escritora, não é?” . Levei um susto hiperbólico com direito a um sopro no coração. Quase... Estou ficando velha, louca e surda. “O que a senhora perguntou mesmo? Acho que não ouvi direito.” E ela me desconsertou consertando a frase: “perguntei se você era professora.” Respondi que sim, claro, “professora com muito orgulho” e quase nenhum vintém para comprar os livros que preciso. Repito: "preciso"! Mas talvez o governo crie um vale ou um kit-livro-best-seller-professor como esses que eles mandam para as escolas públicas com livros infantis e pedagógicos que vão parar na casa de não sei quem, menos nas mãos daqueles que os mereceriam receber e ler por direito legítimo. Até porque, por viver à flor da minha pele, sei que nas escolas públicas, pelo menos as que estudei e trabalhei, biblioteca sempre foi um depósito de livros didáticos desatualizados sendo vigiados por professores afastados de suas salas de aulas, provavelmente por problemas de ordem mental e emocional. Eu sei disso, porque estive lá, nos dois casos contraditórios. E o que faz uma professora deprimida num depósito-biblioteca de escola pública deprimente? Corta os pulsos com a caneta vermelha? É Brasil... "como são tristes as coisas consideradas sem ênfase", diria Drummond. E talvez também dissesse como são tristes as pessoas consideradas sem ênfase! Os professores considerados sem ênfase com os estudantes considerados sem ênfase nas bibliotecas e escolas consideradas sem ênfase.
Mas voltando ao meu delírio instantâneo, lá estava eu a me iludir achando que aquela senhora do elevador pudesse ter lido algum texto escrito por mim e postado no meu blog, esse tempo-espaço democrático que me parece cada vez mais destinado, disponível aos que gostam de escrever e que pelo atraso do destino não conseguiram publicar e que por sorte do mesmo destino encontraram no ciberespaço um novo clube de leitores e interlocutores, parceiros de escritas e leituras. Tem porcaria, é claro, mas tem também muita gente boa. Dá uma vontade de alegria. Então viva a sinestesia e o café - que nos mantém firmes e alertas! Viva ao blog e sua capacidade de alcance transversal, que não nos deixa mais isolados na morte – literal - do autor.
Mas voltando ao meu delírio instantâneo, lá estava eu a me iludir achando que aquela senhora do elevador pudesse ter lido algum texto escrito por mim e postado no meu blog, esse tempo-espaço democrático que me parece cada vez mais destinado, disponível aos que gostam de escrever e que pelo atraso do destino não conseguiram publicar e que por sorte do mesmo destino encontraram no ciberespaço um novo clube de leitores e interlocutores, parceiros de escritas e leituras. Tem porcaria, é claro, mas tem também muita gente boa. Dá uma vontade de alegria. Então viva a sinestesia e o café - que nos mantém firmes e alertas! Viva ao blog e sua capacidade de alcance transversal, que não nos deixa mais isolados na morte – literal - do autor.
E por falar em autoria lembrei agora dos nossos “imortais”, pois preciso me redimir e parabenizar à Academia Brasileira de Letras, pois o que para mim havia se tornado um “quem tem mais tostão leva o fardão”, depois do site, do twitter e principalmente depois de ver o Lêdo Ivo sendo entrevistado pelo Geneton Moraes Neto, não só refiz o meu conceito como virei seguidora de carteirinha da Academia. E devo confessar que nos meus devaneios preconceituosos, cheguei a imaginar a Surfistinha levando o fardão pra costureira aumentar o decote e botar uns brilhinhos a mais. E viva a prolixidade nossa de cada dia! E viva também, nesse nosso atual deserto de vocábulos, a quem sabe o que significa ser prolixo.
Mas voltando ao fio da meada e às livrarias para deixá-las de vez em paz, vendendo, lucrando e festejando os números e não as letras, gostaria de exaltar a existência e a persistência do sebo. Aquele lugar que viciados em livros – como eu, não se cansam de ir, mesmo que o nariz fique todo esfolado de tanta rinite. Ah, um “viva” imenso aos sebos! Deveríamos abraçar coletivamente os sebos assim como fazemos com árvores e lagoas. Faria um bem danado à natureza humana tão saturada de clichês. A cidade agradeceria e as crianças, passarinhos sedentos do alimento da leitura, também.
Vou parar de escrever para aplaudir agora mesmo – de pé – o bom e velho sebo com seus bons e velhos clássicos, verdadeiras adegas centenárias com literaturas finíssimas, como um Camões, um Dante, um Dostoiévski e tantos mais, sem falar nos brasileiros, safra da melhor qualidade: Machado, Guimarães Rosa, Monteiro Lobato – para crianças e adultos de almas endurecidas. O mesmo Monteiro Lobato que muito antes da pressão do pré-sal, ele que também gostava de um petróleo, disse uma frase célebre, iluminada: “um país se faz com homens e livros.”
Eu sou um rato, uma rata de sebo. Longe dos velhos tempos dos mosteiros e do tempo dos livros enclausurados e longe por opção dos novos templos dos shoppings e da promoção relâmpago que lança e privilegia livros apertados que maltratam a mente, sinto-me abastecida e tocada na minha garimpagem particular por iguarias de letras pequenas e consumo difícil. Vou de sebo e contente! Os da Tiradentes e do Catete são ótimos. Sou capaz de tirar a fórceps um velho exemplar de Graciliano Ramos ou José Lins do Rego entre um amontoado de tesouros. Como pirata ou fantasma, escavo títulos e me confundo com velhas assombrações. Mergulho no absurdo em direção oposta. E saio de lá sempre confortada.
Patrícia Porto
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