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Era uma vez o livro proibido pelo MEC...


Quando li a notícia de que o Ministério da Educação (MEC), através de ofício, ordenou o recolhimento de noventa e três mil exemplares do livro infantil “Enquanto o sono não vem”, de José Mauro Brant, quem perdeu o sono fui eu. Lembrando que o livro faz parte do Programa de Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), programa voltado para alunos das séries iniciais das escolas públicas. Pergunto então: como é possível que uma obra baseada nas histórias orais da cultura brasileira possa ofender tanto? Será que os técnicos do ministério não entenderam que há neste ato uma atitude altamente repressiva? E o que há por trás desta determinação tão autoritária?

A confusão começou quando educadores muito preocupados entenderam que o conto “A triste história de Eredegalda” fazia referência a incesto, um tema por demais complexo para ser comentado com crianças pequenas. Claro. Mas, espera aí… Só para citar dois, pois receio que terão que proibir também Chapeuzinho Vermelho com seu Lobo Mau sedutor de crianças e João e Maria com aquela história repleta de canibalismo.. O que realmente estes “educadores” esqueceram ou ignoram – é que este conto se origina na cultura oral. E que para compreender Eredegalda é preciso voltar algumas casas no tempo.

A literatura como conhecemos hoje – com livros, editoras, tablets etc – é recente na História. O começo de tudo está na cultura oral. E é no cruzamento com o popular que a literatura infantil reinventa uma cultura literária própria, uma cultura que se fazia e se faz pela oralidade – através das adivinhas, dos adágios, das trocinhas, das parlendas, das ladainhas, da contação ou narração de histórias. A palavra cultura que, etimologicamente, provém do latim “colere”, significa ao mesmo tempo “cultivar e colher”, ato de criação habitado pelo ato de saber. É a sapiência do povo com toda sua complexidade.

O uso da literatura infantil que se pretende escolarizado e não consegue se descolar dos elementos pedagógicos e moralizantes da história, no sentido mais tradicional, deixa de colaborar para a formação “íntegra” do leitor – seja pela condição de ordenadora de rebanhos, seja pela baixa expectativa que esta pedagogia propõe na interpretação dos textos literários, interpretação marcada pelas representações sociais do “bom meninismo”- uma espécie de docilização do pensamento, que, de fato, castra a espontaneidade do leitor-criança. Se na leitura mora um elemento transgressor que surge do espanto no encontro com o texto, não podemos apartar a criança de suas emoções diante do que ela lê nas histórias infantis, não podemos preservá-la da necessidade de – ao ler – se contar.

É importante lembrar que a literatura infantil não deixa de ser literatura porque é infantil. Trabalhar os contos arcaicos da tradição oral da literatura infantil exige formação adequada e específica, porque este conhecimento faz parte dos estudos mais profundos sobre a permanência da oralidade. E também pertence aos estudos lusófonos, aos estudos sobre a arte literária. À Literatura Infantil cabe o exercício da imaginação pelo jogo permanente e paradoxal com a linguagem, cabe a ruptura e cabe desestabilizar o previsto, inquietar, criar conflitos internos sim, estabelecer uma relação estreita entre ficção e realidade e apostar no que transcende. Sobre a formação dos professores, a inicial e a continuada, principalmente dos professores das séries iniciais, proponho o seguinte: chamar quem entende do bordado para falar de literatura infantil com os professores – e promover um levante de autores, contadores de histórias para participar efetivamente e permanentemente das políticas de formação do leitor nas escolas, nas escolas públicas principalmente.

Falar, ouvir, ler com as crianças está no nosso horizonte permanente de possibilidades. Se há mecanismos de impedimento, de censura ou silenciamentos, caberá a todos nós que trabalhamos com a infância, em qualquer que seja o contexto educacional, encontrar formas de comunicar, formas de lutar contra o estabelecido que nos fere, formas de potencializar nossas ações e reações diante da opressão, do medo e da violência nas relações que nos subalternam e que subalternam os nossos desejos.

Precisamos criar formas de resistência porque há crianças esperando livros infantis nos quais elas se reconheçam. Há livros infantis esperando a escrita de autores que superem o imobilismo que oprime e que escrevam histórias sobre a diversidade e os conflitos da vida, histórias nas quais as crianças se identifiquem e encontrem nas palavras – um lugar de experiência e voz. Há um vazio triste que se abre com esta decisão do MEC e que deve ser preenchido por nossa ousadia e luta. Não podemos desistir de uma infância que é território sensível, vivo e liberto. Pois como dizia a minha avó: “bom mesmo é criar os filhos pro mundo”.

Link para ANF (Agência de Notícias das Favelas):
http://www.anf.org.br/era-uma-vez-o-livro-proibido-pelo-mec/


Patricia Porto

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