Projeto de Pesquisa
Patrícia de Cássia Pereira Porto
Área Temática: Educação Infantil, Alfabetização e séries iniciais.
Palavras-Chave: Cultura; Leitura; Alfabetização; Letramento.
Público-alvo: Alunos e professores da Educação Infantil e 1º ciclo das séries iniciais.
Pensando sobre:
"Gostaria pois que a fala e a escuta que aqui se trançarão fossem semelhantes às idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de um centro calmo toda uma área de jogo, no interior da qual a pedrinha ou a lã importam finalmente menos do que o dom cheio de zelo que deles se faz."
(Roland Barthes)
Para o sociólogo e educador Florestan Fernandes era a partir da junção dos elementos culturais, os aceitos da cultura do adulto e também os elementos elaborados pela própria cultura infantil, que as crianças, na interação com os aspectos culturais do adulto acrescentariam a essa interação, pensada aqui também como simulação do real, uma dinâmica muito singular, numa lógica pertencente apenas ao universo referencial do grupo infantil, que nas brincadeiras socializa brinquedos e experiências. Então haveria sempre algo de novo nas brincadeiras infantis. Aquilo que se repete continuamente, mas de forma sempre diferente. Para Florestan “os folguedos”, por exemplo, não seriam apenas a imitação do adulto por parte da criança, pois a criança não estaria copiando quem quer que seja em seus folguedos, mesmo porque estes pertenceriam ao patrimônio cultural do grupo e já estariam suficientemente despersonalizados, pela duração no tempo e pelas transmissões sucessivas. (FERNANDES, 1979, 175)
Exemplo dado pelo pesquisador para confirmar a apropriação dos elementos da cultura do adulto, esta modificada pelos elementos referenciais da cultura infantil, poderia ser encontrada nos folguedos “Papai e Mamãe” no qual
(...) a criança não imita o pai ou a mãe, mas executa as funções que lhes são atribuídas por sua posição e pelos seus papéis sociais, segundo a padronização da cultura ambiente. (Idem, Ibidem.)
Essa socialização da infância se dava num processo de educação informal dentro dos próprios grupos infantis nas interações cotidianas. Tratava-se então de uma educação das crianças, entre as crianças e pelas crianças”.(Idem, 176) Assim o pesquisador e sociólogo Florestan Fernandes nos ajuda a pensar que a criança é um sujeito de memória e criatividade, capaz de interpretar e compreender o mundo a partir de elementos elaborados por ela própria, brincando. É um sujeito criativo que traz nas suas brincadeiras cotidianas elementos do mundo adulto, resignificando-os a partir de uma cultura infantil. Por isso se faz necessário valorizar a criança como sujeito criador de uma aprendizagem própria, capaz de discutir e construir novos “sentidos e significados” na sua constante relação com o mundo e com os outros.
Quanto ao folclore infantil, Florestan chama a atenção para o fato desse ter sido pouco estudado, não sendo o processo de transmissão dos elementos da cultura infantil sequer analisado até aquele momento, década de 40, mesmo pelos mais dedicados estudiosos dos fatos lúdicos. Pois para Florestan, os fatos referentes ao folclore infantil consistiam, sobretudo nos “fatos lúdicos”, caracterizando-se por isso duplamente: sendo recreativos e geralmente se restringindo ao círculo das crianças. (Idem, 190)
Como podemos notar, a pesquisa de Florestan Fernandes foi precursora em vários aspectos hoje amplamente difundidos e pesquisados sobre a infância, assim como o lúdico, as brincadeiras, o brinquedo. É esse princípio de reconhecimento de uma socialização da infância pela cultura infantil que também veio fortalecer as pesquisas que envolviam e hoje envolvem muitos processos e práticas educacionais relativas à infância, bem como veio também corroborar para com o respeito ampliado a essas questões e isso se deu pelo surgimento de novos olhares para as tantas peculiaridades do universo cultural infantil. Pois a criança é um sujeito de cultura inserido num contexto social assim como o adulto também o é. O encontro desses sujeitos no espaço físico e temporal da escola faz do lúdico, da brincadeira, do jogo, da linguagem e da cultura infantil, possibilidades de acesso a uma educação democrática e emancipatória.
Atualmente, as propostas didáticas para o trabalho com a educação infantil vêm num crescendo contínuo de pesquisas e projetos, mas é ainda no cotidiano escolar que elas se revelam polarizadas entre as que reproduzem a ênfase na escolarização tradicional e mecânica dos conhecimentos e as que introduzem as brincadeiras e os jogos, ainda que associados à uma prática que podem reduzi-los às atividades que tem como meta final servir de apoio à cartilha, ao livro didático e ao "currículo". Kishimoto Tizuco Morshida (1993), apresentou na conclusão de uma de suas pesquisas sobre jogos com crianças pequenas em creches, que nas instituições ainda privilegiava-se o modelo escolar em detrimento da expressão, da criatividade e da iniciativa da criança. Essas atividades representavam uma visão que girava em torno de uma única resposta metodológica, de uma única narrativa para o ensino-aprendizagem das crianças, negando a criatividade e a curiosidade, negando a história que as crianças poderiam desenvolver com a sua própria aprendizagem. Com determinismos pedagógicos uma única versão metodológica exclui a diferença, o diferente – negando a fala, a voz, os ritmos e a possibilidade da criança expressar “sem medo” seus pensamentos livremente.
Os jogos e as brincadeiras não são apenas necessários e essenciais para a infância como parte significativa da constituição da subjetividade da criança, mas também podem se tornar base para a compreensão do universo de referências da criança através da força que há no pensamento mágico, no 'fingire' que habita a brincadeira e que desvela do “faz de conta” o encontro que a criança tem com a realidade. Etimologicamente a palavra fingire tem sua origem na palavra “esculpir”. Fingir nasce então como possibilidade de criar, de um criar artesanal, como 'poiesis'. Então criar é poético e é também resiliência, imaginação e realidade amalgamadas. Quando uma criança sofre desde cedo supressões de seus direitos básicos: um lar, alimentação, cuidados com sua saúde e higiene, educação de qualidade... Onde ela se refugiará? Não estamos falando nem do amor, tão básico à vida de qualquer ser vivente. Mas se uma criança não recebe o afeto para que se desenvolva plenamente sem tantos medos e inseguranças, onde ela se refugiará?
Na pesquisa que realizei para a monografia “A mise em abyme no Cotidiano Escolar: o discurso oral e memorialístico como processo de significação” (2001), que teve como estudo de caso crianças pequenas em situações-limites, vivenciei de perto a realidade e o fantasiar a realidade de crianças que se refugiavam na escola e também no que a escola tinha a lhes oferecer de acolhimento e oportunidades. Vítimas de guerras civis-urbanas, sobreviventes da miséria e do descaso das políticas públicas, essas crianças quando se encontravam com os jogos e as brincadeiras na ambiência da escola reencontravam neste “terceiro espaço” o seu direito legitimo à infância.
Cada vez mais, especialistas em desenvolvimento infantil estão reconhecendo a importância da imaginação e do papel que ela desempenha na compreensão da realidade. E aquilo que poderia ser tomado como uma fragilidade, que é “imaginar”, quando se pensa a imaginação como “fuga” da realidade, pode ser pensado, estudado com uma nova dimensão que coloca como reflexão e ação uma aprendizagem em “espiral” que entende o imaginário como realidade, onde a criança pode jogar e brincar, aprendendo e criando múltiplos conhecimentos. Assim “brincando”, “jogando” as crianças ampliam sua capacidade de apreensão da realidade usando instrumentos da própria imaginação, assim como aprendem a criar e resolver problemas, interagindo com os outros. E essas atividades estão estritamente ligadas ao processo de aquisição da linguagem falada e da linguagem escrita. Para pensarmos numa educação holística, que privilegie a transversalidade na aprendizagem – e não a fragmentação, é necessário pensar em projetos que vislumbrem o cotidiano escolar a partir da inclusão dos jogos, dos brinquedos e das brincadeiras nas salas de aula. Mas para isso precisamos pensar “enfaticamente” nas práticas pedagógicas e na formação dos profissionais de educação. Numa formação docente voltada para o holos do ensino-aprendizagem que envolve as crianças a de se pensar em estratégias metodológicas, em projetos que levem em conta que: “brincando as crianças aprendem: a cooperar com os companheiros (...), a obedecer as regras do jogo (...), a respeitar os direitos dos outros (...), a assumir responsabilidades, a aceitar penalidades que lhe são impostas (...), a dar oportunidades aos demais (...), enfim a viver em sociedade.” (Kichimoto Morshida, 1993) Portanto, Brincar não é somente uma atividade sem conseqüência para criança. Brincando, ela não apenas de diverte, mas recria e interpreta o mundo em que vive, se relacionando com este mundo. E há muitas atividades lúdicas que demandam muito mais do humano, do pensamento interno da criança e também da relação que ela tem com o seu corpo, com toda a sua expressividade, seus movimentos, com os sons da sua linguagem, com as possibilidades das inter-ações com os outros, crianças e adultos, com a TV, com as novas tecnologias. E se lembrarmos que a nossa linguagem é, de fato, uma correnteza paradoxal e mágica em que a regra e o jogo se confrontam...
Patrícia Porto
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