"O filósofo e sociólogo Edgar Morin (...) defende uma «reforma radical» do modelo de ensino nas universidades e escolas, salientando a necessidade de acabar com a 'hiperespecialização'.
«Temos a necessidade de reformar radicalmente o actual modelo de ensino nas universidades e escolas secundárias. Porquê? Porque actualmente o conhecimento está desintegrado em fragmentos disjuntos no interior das disciplinas, que não estão interligadas entre si e entre as quais não existe diálogo», sublinha, em entrevista à Lusa.
O filósofo francês considera que o modelo actual leva a «negligenciar a formação integral e não prepara os alunos para mais tarde enfrentarem o imprevisto e a mudança».
Edgar Morin, de 88 anos, critica, por exemplo, que nas escolas e universidades «não exista um ensino sobre o próprio saber», ou seja, sobre «os enganos, ilusões e erros que partem do próprio conhecimento», defendendo a necessidade de criar «cursos de conhecimento sobre o próprio conhecimento».
Lamenta, igualmente, que a «condição humana esteja totalmente ausente» do ensino: «Perguntas como 'o que significa ser humano?' não são ensinadas», critica.
Por outro lado, acredita que a «excessiva especialização» no ensino e nas profissões produz «um conhecimento incapaz de gerar uma visão global da realidade», uma «inteligência cega».
«Conhecer apenas fragmentos desagregados da realidade faz de nós cegos e impede-nos de enfrentar e compreender problemas fundamentais do nosso mundo enquanto humanos e cidadãos, e isto é uma ameaça para a nossa sobrevivência», defende.
«Está demonstrado que a capacidade de tratar bem os problemas gerais favorece a resolução de problemas específicos», garante Morin, lembrando que a maioria dos grandes cientistas do século XX, como Einstein ou Eisenberg, «além de especialistas, tinham uma grande cultura filosófica e literária».
«Um bom cientista é alguém que procura ideias de outros campos do conhecimento para fecundar a sua disciplina», afirma, sublinhando que «todos os grandes descobrimentos se fazem nas fronteiras das disciplinas».
Fonte: Diário Digital / Lusa
Os sete saberes necessários à educação do futuro. [1]
Edgar Morin.
Os sete saberes necessários à
educação do futuro não têm nenhum programa educativo, escolar ou universitário.
Aliás, não estão concentrados no primário, nem no secundário, nem no ensino universitário,
mas abordam problemas específicos para cada um desses níveis. Eles dizem
respeito aos setes buracos negros da educação, completamente ignorados,
subestimados ou fragmentados nos programas educativos. Programas esses que, na
minha opinião, devem ser colocados no centro das preocupações sobre a formação
dos jovens, futuros cidadãos.
O Conhecimento.
O primeiro buraco negro diz
respeito ao conhecimento. Naturalmente, o ensino fornece conhecimento, fornece
saberes. Porém, apesar de sua fundamental importância, nunca se ensina o que é,
de fato, o conhecimento. E sabemos que os maiores problemas neste caso são o
erro e a ilusão.
Ao examinarmos as crenças do
passado, concluímos que a maioria contém erros e ilusões. Mesmo quando pensamos
em vinte anos atrás, podemos constatar como erramos e nos iludimos sobre o
mundo e a realidade. E por que isso é tão importante? Porque o conhecimento
nunca é um reflexo ou espelho da realidade. O conhecimento é sempre uma
tradução, seguida de uma reconstrução. Mesmo no fenômeno da percepção, através
do qual os olhos recebem estímulos luminosos que são transformados,
decodificados, transportados a um outro código, que transita pelo nervo ótico,
atravessa várias partes do cérebro para, enfim, transformar aquela informação
primeira em percepção. A
partir deste exemplo, podemos concluir que a percepção é uma reconstrução.
Tomemos um outro exemplo de
percepção constante: a imagem do ponto de vista da retina. As pessoas que estão
próximas parecem muito maiores do que aquelas que estão mais distantes, pois à
distância, o cérebro não realiza o registro e termina por atribuir uma dimensão
idêntica para todas as pessoas. Assim como os raios ultravioletas e
infravermelhos que nós não vemos, mas sabemos que estão aí e nos impõem uma
visão segundo as suas incidências. Portanto, temos percepções, ou seja,
reconstruções, traduções da realidade. E toda tradução comporta o risco de
erro. Como dizem os italianos “tradotore/traditore”.
Também sabemos que não há nenhuma
diferença intrínseca entre uma percepção e uma alucinação. Por exemplo: se
tenho uma alucinação e vejo Napoleão ou Júlio César, não há nada que me diga
que estou enganado, exceto o fato de saber que eles estão mortos. São os outros
que vão me dizer se o que vejo é verdade ou não. Quero dizer com isso que
estamos sempre ameaçados pela alucinação. Até nos processos de leitura isto
acontece. Nós sabemos que não seguimos a linha do que está escrito, pois, às
vezes, nossos olhos saltam de uma palavra para outra e reconstrói o conjunto de
uma maneira quase alucinatória. Neste momento, é o nosso espírito que colabora
com o que nós lemos. E não reconhecemos os erros porque deslizamos neles. O
mesmo acontece, por exemplo, quando há um acidente de carro. As versões e as
visões do acidente são completamente diferentes, principalmente pela emoção e
pelo fato das pessoas estarem em ângulos diferentes.
No plano histórico há erros, se
me permitem o jogo de palavras, histéricos. Tomemos um exemplo um pouco
distante de nós: os debates sobre a Primeira Guerra Mundial. Uma época em que a
França e a Alemanha tinham partidos socialistas fortes, potentes e muito
pacifistas, e que, evidentemente, eram contrários à guerra que se anunciava.
Mas, a partir do momento em que se desencadeou a guerra, os dois partidos se
lançaram, massivamente a uma campanha de propaganda, cada um imputando ao outro
os atos mais ignóbeis. Isto durou até o fim da guerra. Hoje, podemos constatar
com os eventos trágicos do Oriente Médio a mesma maneira de tratar a informação.
Cada um prefere camuflar a parte que lhe é desvantajosa para colocar em relevo
a parte criminosa do outro.
Este problema se apresenta de uma
maneira perceptível e muito evidente, porque as traduções e as reconstruções
são também um risco de erro e muitas vezes o maior erro é pensar que a idéia é
a realidade. E tomar a idéia como algo real é confundir o mapa com o terreno.
Outras causas de erro são as
diferenças culturais, sociais e de origem. Cada um pensa que suas idéias são as
mais evidentes e esse pensamento leva a idéias normativas. Aquelas que não
estão dentro desta norma, que não são consideradas normais, são julgadas como
um desvio patológico e são taxadas como ridículas. Isso não ocorre somente no
domínio das grandes religiões ou das ideologias políticas, mas também das
ciências. Quando Watson e Crick decodificaram a estrutura do código genético, o
DNA (ácido desoxirribonucléico), surpreenderam e escandalizaram a maioria dos
biólogos, que jamais imaginavam que isto poderia ser transcrito em moléculas
químicas. Foi preciso muito tempo para que essas idéias pudessem ser aceitas.
Na realidade, as idéias adquirem
consistência como os deuses nas religiões. É algo que nos envolve e nos domina
a ponto de nos levar a matar ou morrer. Lenin dizia: “Os fatos são teimosos,
mas, na realidade, as idéias são ainda mais teimosas do que os fatos e resistem
aos fatos durante muito tempo”. Portanto, o problema do conhecimento não deve
ser um problema restrito aos filósofos. É um problema de todos e cada um deve
levá-lo em conta desde muito cedo e explorar as possibilidades de erro para ter
condições de ver a realidade, porque não existe receita milagrosa.
O Conhecimento Pertinente.
O segundo buraco negro é que não
ensinamos as condições de um conhecimento pertinente, isto é, de um
conhecimento que não mutila o seu objeto. Nós seguimos, em primeiro lugar, um
mundo formado pelo ensino disciplinar. É evidente que as disciplinas de toda
ordem ajudaram o avanço do conhecimento e são insubstituíveis. O que existe entre
as disciplinas é invisível e as conexões entre elas também são invisíveis. Mas
isto não significa que seja necessário conhecer somente uma parte da realidade.
É preciso ter uma visão capaz de situar o conjunto. É necessário dizer que não
é a quantidade de informações nem a sofisticação em Matemática que podem dar
sozinhas de um conhecimento pertinente, mas sim a capacidade de colocar o
conhecimento no contexto.
A economia, que é das ciências
humanas, a mais avançada, a mais sofisticada, tem um poder muito fraco e erra
muitas vezes nas suas previsões, porque está ensinando de modo a privilegiar o
cálculo. Com isso, acaba esquecendo os aspectos humanos, como o sentimento, a
paixão, o desejo, o temor, o medo. Quando há um problema na bolsa, quando as ações
despencam, aparece um fator totalmente irracional que é o pânico, e que,
freqüentemente, faz com que o fator econômico tenha a ver com o humano,
ligando-se, assim, à sociedade, à psicologia, à mitologia. Essa realidade
social é multidimensional e o econômico é apenas uma dimensão dessa sociedade.
Por isso, é necessário contextualizar todos os dados.
Se não houver, por exemplo, a
contextualização dos conhecimentos históricos e geográficos, cada vez que
aparecer um acontecimento novo que nos fizer descobrir uma região desconhecida,
como o Kosovo, o Timor ou Serra Leoa, não entenderemos nada.
Portanto, o ensino por
disciplina, fragmentado e dividido, impede a capacidade natural que o espírito
tem de contextualizar. E é essa capacidade que deve ser estimulada e
desenvolvida pelo ensino, a de ligar as partes ao todo e o todo às partes.
Pascal dizia, já no século XVII: “Não se pode conhecer as partes sem conhecer o
todo, nem conhecer o todo sem conhecer as partes”.
O contexto tem necessidade, ele
mesmo, de seu próprio contexto. E o conhecimento, atualmente, deve se referir
ao global. Os acidentes locais têm repercussão sobre o conjunto e as ações do
conjunto sobre os acidentes locais. Isso foi comprovado depois da guerra do
Iraque, da guerra da Iugoslávia e, atualmente, pode ser verificado com o
conflito do Oriente Médio.
A Identidade Humana.
O terceiro aspecto é a identidade
humana. É curioso que nossa identidade seja completamente ignorada pelos
programas de instrução. Podemos perceber alguns aspectos do homem biológico em
Biologia, alguns aspectos psicológicos em Psicologia, mas a realidade humana é
indecifrável. Somos indivíduos de uma sociedade e fazemos parte de uma espécie.
Mas, ao mesmo tempo em que fazemos parte de uma sociedade, temos a sociedade
como parte de nós, pois desde o nosso nascimento a cultura se nos imprime. Nós
somos de uma espécie, mas ao mesmo tempo a espécie é em nós e depende de nós.
Se nos recusamos a nos relacionar sexualmente com um parceiro de outro sexo,
acabamos com a espécie. Portanto, o relacionamento entre
indivíduo-sociedade-espécie é como a trindade divina, um dos termos gera o
outro e um se encontra no outro. A realidade humana é trinitária.
Eu acredito na possível a
convergência entre todas as ciências e a identidade humana.
Um certo número de agrupamentos
disciplinares vai favorecer esta convergência. É necessário reconhecer que na
segunda metade do século XX, houve uma revolução científica, reagrupando as
disciplinas em ciências pluridisciplinares. Assim, há a cosmologia, as ciências
da terra, a ecologia e a pré-história.
Tome-se como exemplo a
cosmologia, que, efetivamente, utiliza a microfísica, os aceleradores de
partículas para imaginar os primeiros segundos do universo. Ela utiliza a
observação e pratica uma reflexão filosófica sobre o mundo, assim como fizeram
Hubert Reeves, Hawkins, Michel Cassé e tantos outros. Eles refletem sobre o
universo incrível no qual vivemos. Mas o que é importante para a identidade
humana é saber que estamos neste minúsculo planeta perdidos no cosmos. Nossa
missão não é mais a de conquistar o mundo como acreditava Descartes, Bacon e
Marx. Nossa missão se transformou em civilizar o pequeno planeta em que
vivemos.
Por outro lado, as ciências da
terra nos inscrevem neste planeta formado por fragmentos cósmicos, resultados
de uma explosão de sóis anteriores. Resta saber como estes fragmentos reunidos
e aglomerados puderam criar uma tal organização, uma auto-organização, para nos
dar este planeta. É necessário mostrar que ele gerou a vida, e a nós que somos,
filhos da vida.
A biologia, com a teoria da
evolução, nos prova como trazemos dentro de nós, efetivamente, o processo de
desenvolvimento da primeira célula vivente, que se multiplicou e se
diversificou.
Quando sonhamos com nossa identidade,
devemos pensar que temos partículas que nasceram no despertar do universo.
Temos átomos de carbono que se formaram em sóis anteriores ao nosso, pelo
encontro de três núcleos de hélio que se constituíram em moléculas e
neuromoléculas na terra. Somos todos filhos do cosmos, mas nos transformamos em
estranhos através de nosso conhecimento e de nossa cultura.
Portanto, é preciso ensinar a
unidade dos três destinos, porque somos indivíduos, mas como indivíduos somos,
cada um, um fragmento da sociedade e da espécie Homo sapiens, à qual
pertencemos. E o importante é que somos uma parte da sociedade, uma parte da
espécie, seres desenvolvidos sem os quais a sociedade não existe. A sociedade
só vive com essas interações.
É importante, também, mostrar que,
ao mesmo tempo em que o ser humano é múltiplo, ele é parte de uma unidade. Sua
estrutura mental faz parte da complexidade humana. Portanto, ou vemos a unidade
do gênero e esquecemos a diversidade das culturas e dos indivíduos, ou vemos a
diversidade das culturas e não vemos a unidade do ser humano.
Esse problema vem causando
polêmicas desde o século XVIII, quando Voltaire disse: “Os chineses são iguais
a nós, têm paixões, choram”. E Herbart, o pensador alemão, afirmou: “Entre uma
cultura e outra não há comunicação, os seres são diferentes”. Os dois tinham
razão, mas na realidade essas duas verdades têm que ser articuladas. Nós temos
os elementos genéticos da nossa diversidade e, é claro, os elementos culturais
da nossa diversidade.
É preciso lembrar que rir,
chorar, sorrir, não são atos aprendidos ao longo da educação, são inatos, mas
modulados de acordo com a educação. Heigerfeld fez uma observação sobre uma
jovem surda-muda de nascença que ria, chorava e sorria. Atualmente, estudos
demonstram que o feto começa a sorrir no ventre da mãe. Talvez porque não saiba
o que o espera depois... Mas isso nos permite entender a nossa realidade, nossa
diversidade e singularidade.
Chegamos, então, ao ensino da
literatura e da poesia. Elas não devem ser consideradas como secundárias e não
essenciais. A literatura é para os adolescentes uma escola de vida e um meio
para se adquirir conhecimentos. As ciências sociais vêem categorias e não
indivíduos sujeitos a emoções, paixões e desejos. A literatura, ao contrário, como
nos grandes romances de Tolstoi, aborda o meio social, o familiar, o histórico
e o concreto das relações humanas com uma força extraordinária.
Podemos dizer que as telenovelas
também nos falam sobre problemas fundamentais do homem; o amor, a morte, a
doença, o ciúme, a ambição, o dinheiro. Temos que entender que todos esses
elementos são necessários para entender que a vida não é aprendida somente nas
ciências formais. E a literatura tem a vantagem de refletir sobre a
complexidade do ser humano e sobre a quantidade incrível de seus sonhos. Como
James Joyce, por exemplo, que, ao criar um personagem, mostrava que uma pessoa
pode ter sentimentos totalmente diversos. Ou como o herói de Dostoievski, em O Idiota que não sabe se
a jovem está apaixonada por ele e ao fim da trama, depois de ter sofrido muito,
encontra um amigo que lhe diz: “mas que imbecil você é, não entendeu que ela o
ama”.
Isto pode acontecer com qualquer
pessoa, é a dificuldade de saber o que o outro pensa e sente.
Marcel Proust mostrou, em Um amor
de Swan, o que ele chamava de intermitências do coração, ou seja, que uma
pessoa pode se apaixonar, esquecer-se da pessoa desejada e voltar a amá-la.
Neste romance o herói sofre durante anos de ciúmes por causa de uma mulher e
quando ele já não está mais apaixonado, diz: “mas eu sofri tanto por uma mulher
que não me amava e que nem era meu tipo”.
Podemos, então, compreender a
complexidade humana através da literatura. A poesia nos ensina a qualidade
poética da vida, essa qualidade que nós sentimos diante de fatos da realidade.
Como, por exemplo, os espetáculos da natureza: o céu de Brasília que é tão
bonito. A vida não deve ser uma prosa que se faça por obrigação. A vida é viver
poeticamente na paixão, no entusiasmo.
Para que isso aconteça, devemos
fazer convergir todas as disciplinas conhecidas para a identidade e para a
condição humana, ressaltando a noção de homo sapiens; o homem racional e
fazedor de ferramentas, que é, ao mesmo tempo, louco e está entre o delírio e o
equilíbrio, nesse mundo de paixões em que o amor é o cúmulo da loucura e da
sabedoria.
O homem não se define somente
pelo trabalho, mas também pelo jogo. Não só as crianças, como também os adultos
gostam de jogar. Por isso vemos partidas de futebol. Nós somos Homo ludens, além
de Homo economicus. Não vivemos só em função do interesse econômico. Há,
também, o homo mitologicus, isto é, vivemos em função de mitos e crenças.
Enfim o homem é prosaico e
poético. Como dizia Hölderling: “O homem habita poeticamente na terra, mas também
prosaicamente e se a prosa não existisse, não poderíamos desfrutar da poesia”.
A Compreensão Humana.
O quarto aspecto é sobre a
compreensão humana. Nunca se ensina sobre como compreender uns aos outros, como
compreender nossos vizinhos, nossos parentes, nossos pais. O que significa
compreender?
A palavra compreender vem do
latim, compreendere, que quer dizer: colocar junto todos os elementos de
explicação, ou seja, não ter somente um elemento de explicação, mas diversos.
Mas a compreensão humana vai além disso, porque, na realidade, ela comporta uma
parte de empatia e identificação. O que faz com que se compreenda alguém que
chora, por exemplo, não é analisar as lágrimas no microscópio, mas saber o
significado da dor, da emoção. Por isso, é preciso compreender a compaixão, que
significa sofrer junto. É isto que permite a verdadeira comunicação humana.
A grande inimiga da compreensão é
a falta de preocupação em
ensiná-la. Na realidade, isto está se agravando, já que o
individualismo ganha um espaço cada vez maior. Estamos vivendo numa sociedade
individualista, que favorece o sentido de responsabilidade individual, que
desenvolve o egocentrismo, o egoísmo e que, consequentemente, alimenta a
autojustificação e a rejeição ao próximo.
A raiva leva à vontade de
eliminar o outro e tudo aquilo que possa aborrecer. De certa maneira, isto
favorece ao que os ingleses chamam de self-deception, isto é, mentir a
si mesmo, pois o egocentrismo vai tramando sempre o negativo e esquecendo dos
outros elementos.
A redução do outro, a visão
unilateral e a falta de percepção sobre a complexidade humana são os grandes
empecilhos da compreensão. Outro aspecto da incompreensão é a indiferença. E,
por este lado, é interessante abordar o cinema, que os intelectuais tanto acusam
de alienante. Na verdade, o cinema é uma arte que nos ensina a superar a
indiferença, pois transforma em heróis os invisíveis sociais, ensinando-nos a
vê-los por um outro prisma. Charlie Chaplin, por exemplo, sensibilizou platéias
inteiras com o personagem do vagabundo. Outro exemplo é Coppola, que
popularizou os chefes da Máfia com “O Chefão”. No teatro, temos a complexidade
dos personagens de Shakspeare: reis, gangsters, assassinos e ditadores. No
cinema, como na filosofia de Heráclito: “Despertados, eles dormem”. Estamos
adormecidos, apesar de despertos, pois diante da realidade tão complexa, mal
percebemos o que se passa ao nosso redor.
Por isso, é importante este
quarto ponto: compreender não só os outros como a si mesmo, a necessidade de se
auto-examinar, de analisar a autojustificação, pois o mundo está cada vez mais
devastado pela incompreensão, que é o câncer do relacionamento entre os seres
humanos.
A Incerteza.
O quinto aspecto é a incerteza.
Apesar de, nas escolas, ensinar-se somente as certezas, como a gravitação de
Newton e o eletromagnetismo, atualmente a ciência tem abandonado determinados
elementos mecânicos para assimilar o jogo entre certeza e incerteza, da
micro-física às ciências humanas. É necessário mostrar em todos os domínios,
sobretudo na história, o surgimento do inesperado. Eurípides dizia no fim de
três de suas tragédias que: “os deuses nos causam grandes surpresas, não é o
esperado que chega e sim o inesperado que nos acontece”. É a velha idéia de
2.500 anos, que nós esquecemos sempre. As ciências mantêm diálogos entre dados
hipotéticos e outros dados que parecem mais prováveis. Os processos físicos,
assim como outros também, pressupõem variações que nos levam à desordem caótica
ou à criação de uma nova organização, como nas teorias sobre a incerteza de
Prigogine, baseadas nos exemplos dos turbilhões de Born. Analisando
retroativamente a história da vida, constata-se que ela não foi linear, que não
teve uma evolução de baixo para cima. A evolução segundo Darwin foi uma evolução
composta de ramificações, a exemplo do mundo vegetal e o mundo animal.
O homem vem de uma dessas
ramificações e conseguiu chegar à consciência e à inteligência, mas não somos a
meta da evolução, fazemos parte desse processo. A história da vida foi, na
verdade, marcada por catástrofes.
No fim da era secundária, a queda
do asteróide que matou os dinossauros e ressecou a vegetação desses animais
enormes, matando-os de fome deu oportunidade à proliferação dos mamíferos.
Assim também ocorreu com as sociedades humanas. Todas sofreram o colapso por
uma razão ou outra. Nem mesmo o império romano, que parecia eterno, conseguiu
sobreviver. As sociedades andinas, que eram mais potentes que seus
colonizadores espanhóis e cujas capitais eram muita mais ricas que Paris, Madri
ou Lisboa, foram destruídas por espanhóis que chegaram com cavalos e armas
desconhecidas.
As duas guerras mundiais
destruíram muito na metade do século XX, depois da Primeira Guerra Mundial.
Três grandes impérios da época, por exemplo, o romanootomano, o austro-húngaro
e o soviético, desapareceram. Isto nos demonstra a necessidade de ensinar o que
chamamos de ecologia da ação: a atitude que se toma quando uma ação é
desencadeada e escapa ao desejo e às intenções daquele que a provocou, desencadeando
influências múltiplas que podem desviá-la até para o sentido oposto ao
intencionado.
A história humana está repleta de
exemplos dessa natureza. O mais evidente no final do século XX foi o projeto
político de Gorbatchev, que pretendeu reformar o sistema político da União
Soviética, mas acabou provocando o começo de sua própria desagregação e
implosão.
Assim tem acontecido em todas as
etapas da história. O inesperado aconteceu e acontecerá, porque não temos
futuro e não temos certeza nenhuma do futuro. As previsões não foram
concretizadas, não existe determinismo do progresso. Os espíritos, portanto,
têm que ser fortes e armados para enfrentarem essa incerteza e não se
desencorajarem.
Essa incerteza é uma incitação à
coragem. A aventura humana não é previsível, mas o imprevisto não é totalmente
desconhecido. Somente agora se admite que não se conhece o destino da aventura
humana. É necessário tomar consciência de que as futuras decisões devem ser
tomadas contando com o risco do erro e estabelecer estratégias que possam ser
corrigidas no processo da ação, a partir dos imprevistos e das informações que
se tem.
A Condição Planetária.
O sexto aspecto é a condição
planetária, sobretudo na era da globalização no século XX – que começou, na
verdade no século XVI com a colonização da América e a interligação de toda a
humanidade. Esse fenômeno que estamos vivendo hoje, em que tudo está conectado,
é um outro aspecto que o ensino ainda não tocou, assim como o planeta e seus
problemas, a aceleração histórica, a quantidade de informação que não
conseguimos processar e organizar.
Este ponto é importante porque
existe, neste momento, um destino comum para todos os seres humanos. O
crescimento da ameaça letal se expande em vez de diminuir: a ameaça nuclear, a
ameaça ecológica, a degradação da vida planetária. Ainda que haja uma tomada de
consciência de todos esses problemas, ela é tímida e não conduziu ainda a
nenhuma decisão efetiva. Por isso, faz-se urgente a construção de uma
consciência planetária.
Conhecer o nosso planeta é
difícil: os processos de todas as ordens – econômicos, ideológicos e sociais –
estão de tal maneira imbricados e são tão complexos, que compreendê-los é um
verdadeiro desafio para o conhecimento. Ortega y Gasset dizia: “não sabemos o
que acontece, isto é o que acontece”.
É necessária uma certa distância
em relação ao imediato para podermos compreendê-lo. E, atualmente, dada a
aceleração e a complexidade do mundo, é quase impossível. Mas, faz-se
necessário ressaltar, é esta a dificuldade. É necessário ensinar que não é
suficiente reduzir a um só a complexidade dos problemas importantes do planeta,
como a demografia, ou a escassez de alimentos, ou a bomba atômica, ou a
ecologia. Os problemas estão todos amarrados uns aos outros. Daqui para frente,
existem, sobretudo, os perigos de vida e morte para a humanidade, como a ameaça
da arma nuclear, como a ameaça ecológica, como o desencadeamento dos
nacionalismos acentuados pelas religiões. É preciso mostrar que a humanidade
vive agora uma comunidade de destino comum.
A Antropo-ética.
O último aspecto é o que vou
chamar de antropo-ético, porque os problemas da moral e da ética diferem a
depender da cultura e da natureza humana. Existe um aspecto individual, outro
social e outro genético, diria de espécie. Algo como uma trindade em que as
terminações são ligadas: a antropo-ética. Cabe ao ser humano desenvolver, ao
mesmo tempo, a ética e a autonomia pessoal (as nossas responsabilidades
pessoais), além de desenvolver a participação social (as responsabilidades
sociais), ou seja, a nossa participação no gênero humano, pois compartilhamos
um destino comum.
A antropo-ética tem um lado
social que não tem sentido se não for na democracia, porque a democracia
permite uma relação indivíduo-sociedade e nela o cidadão deve se sentir
solidário e responsável. A democracia permite aos cidadãos exercerem suas
responsabilidades através do voto. Somente assim é possível fazer com que o
poder circule, de forma que aquele que foi uma vez controlado, terá a chance de
controlar. Porque a democracia é, por princípio, um exercício de controle. Não
existe, evidentemente, democracia absoluta. Ela é sempre incompleta. Mas
sabemos que vivemos em uma época de regressão democrática, pois o poder
tecnológico agrava cada vez mais os problemas econômicos. Na verdade, o é
importante orientar e guiar essa tomada de consciência social que leva à
cidadania, para que o indivíduo possa exercer sua responsabilidade.
Por outro lado, a ética do ser
humano está se desenvolvendo através das associações não-governamentais, como
os Médicos Sem Fronteiras, o Greenpeace, a Aliança pelo Mundo Solidário e
tantas outras que trabalham acima de entidades religiosas, políticas ou de
Estados nacionais, assistindo aos países ou às nações que estão sendo ameaçadas
ou em graves conflitos. Devemos conscientizar a todos sobre essas causas tão
importantes, pois estamos falando do destino da humanidade.
Seremos capazes de civilizar a
terra e fazer com que ela se torne uma verdadeira pátria? Estes são os sete
saberes necessários ao ensino. E não digo isso para modificar programas. Na
minha opinião, não temos que destruir disciplinas, mas sim integrá-las,
reuni-las em uma ciência como, por exemplo, as ciências da terra (a sismologia,
a vulcanologia, a meteorologia), todas elas articuladas em uma concepção
sistêmica da terra.
Penso que tudo deva estar
integrado para permitir uma mudança de pensamento; para que se transforme a
concepção fragmentada e dividida do mundo, que impede a visão total da realidade.
Essa visão fragmentada faz com que os problemas permaneçam invisíveis para
muitos, principalmente para muitos governantes.
E hoje que o planeta já está, ao
mesmo tempo, unido e fragmentado, começa a se desenvolver uma ética do gênero
humano, para que possamos superar esse estado de caos e começar, talvez, a
civilizar a terra.
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