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O discurso oral e as possibilidades de diálogo entre Literatura e História.

(Trechos do Livro: Narrativas Memorialísticas por uma arte docente na Escolarização da Literatura)

Patrícia de Cássia Pereira Porto




A literatura é vida e a história foi vida real no tempo em que não era história.

...tudo quanto não for vida, é literatura. A história também.
A história, sobretudo, sem querer ofender.
(José Saramago - História do Cerco de Lisboa)


            João do Rio, grande cronista carioca do início do século XX, costumava trazer para as suas crônicas, personagens reais. Era de seu costume como um bom flâneur, andar pelas ruas do Centro da cidade do Rio de Janeiro, observando os transeuntes, os trabalhadores de rua: os ambulantes, os homens-sanduíches, as prostitutas, os malandros da Lapa, os artistas da noite:

             Eu amo a rua. Esse sentimento e natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com ao dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. (Rio, 1908, grifo meu)

              Eis a polifonia do texto literário: este encontro de vozes que pertenceram e pertencem às mais diversas histórias de vida, ou ainda as vidas inventadas como “estórias”. Afinal, quantas pessoas e personalidades da própria história oficial já se tornaram personagens e quantos personagens literários já se tornaram quase pessoas do nosso convívio? Capitu? Bentinho? Personagens? Pessoas? Não será este o encontro desafiador entre a história e a literatura?
                Quantas ruas do Rio Antigo conhecemos com Machado de Assis e seus livros? A Cinelândia, a Rua do Ouvidor e da Uruguaiana, a Confeitaria Cavé, o Morro do Livramento, O Lago do Rossio, hoje Praça Tiradentes, lugar preferido de Machado. Como Machado se aproxima de Proust nesta busca pelo registro dos lugares e dos tipos humanos: memória proustiana ou machadiana, na qual o imaginário se funde com o real, investigando o passado no presente, mergulhando nas reminiscências, nos dramas psicológicos, nos terrores noturnos.
                Como poderíamos, na atualidade, voltar ao Rio Antigo se não fosse através da narrativa memorialística de autores que fizeram da arte literária um instrumento de preservação da história cultural da(s) cidade(s)? O Rio Antigo foi, durante décadas, demolido. Hoje, mesmo com as restaurações dos prédios antigos de épocas diversas, como diria Drummond, não passa de um quadro na parede.
                As experiências e as memórias vividas no cotidiano das ruas e das cidades poderão não pertencer a uma determinada época da historiografia tradicional, mesmo porque trarão dentro de si inúmeras versões e ramificações, fugindo à literatura das histórias ditas oficiais, de versões definitivas. No cotidiano das cidades, o definitivo é também provisório, nos remetendo a própria reformulação das experiências. Estamos neste sentido a nos re-dizer cotidianamente, tentando remontar os números das agendas que não seguimos – os números que se perdem na produção diária da vida, na “produção do material, do espiritual e das relações sociais”. (Lefebvre, 1991, 37)
              Viver historicamente é próprio da nossa natureza humana. Cada um de nós tem natureza e esta natureza é histórica. Temos algo que nos antecedeu e alguém, como diz Benjamin, que está a nossa espera. Sendo assim somos um coletivo de histórias e a grande importância dos nossos acontecimentos não está no próprio acontecimento, mas sim em todo uma “massa” , toda uma gente que faz do nada o acontecimento. Como pensar em Canudos sem pensar naquele povo que enfrenta até a morte, até o demo por Antônio Conselheiro? Como pensar as grandes revoluções populares sem pensar na gana que mobiliza e impulsiona o coletivo? Como pensar, por exemplo, na história pessoal e na vitória de Luís Inácio Lula da Silva para a presidência do Brasil sem pensar nos retirantes nordestinos viajando em paus de araras, sem pensar nos metalúrgicos do ABC paulista, no partido dos trabalhadores ou no povo que o elegeu? Uma grande responsabilidade ser porta-voz de tantos coletivos.
                       A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. (198) Na história de Lula reside a história de muitos(as) narradores(as) anônimo(as), como a história de Socorro ou Maria do Socorro Lira Feitosa, líder oral de um grupo de famintos, narradora cabralina que durante uma viagem da Caravana da Cidadania pelo interior de Pernambuco, próximo a Garanhuns, interrompe o trajeto dos ônibus, pondo-se a frente deles para denunciar a existência de um Brasil de misérias: Nóis não ta aqui por boniteza. Nóis tá por precisão. A gente tamus passando fome. Zuenir Ventura, autor e também ator nesta narrativa traz de um passado recente de Brasil, a figura daquela mulher, que é a própria pernambucana , convidando-nos a uma viagem pelo Brasil real, uma “viagem ao coração do Brasil”. E é Zuenir quem narra na crônica “Lula no coração do Brasil” :
                         Eram 10 horas quando uma senhora, sob o efeito da fome e do sol, desmaiou. Socorro segurava o microfone pela primeira vez e exigia mais vagas nas frentes de trabalho, comida imediata e um caminhão para conduzi-los de volta: Nóis num vorta a pés. Tendo que seguir viagem, Lula deixou uma comissão chefiada pelo senador Eduardo Suplicy para acompanhar a líder dos famélicos da terra até a prefeitura, onde apresentaria suas exigências.Foram negociações tensas, porque na região estavam ocorrendo muitos saques a lojas e feira livres. O prefeito reclamou da insuficiência de recursos, da dimensão da miséria e alegou que as coisas não podiam ser resolvidas de uma hora para a outra. Foi então que ouvi pela primeira vez uma frase muito comum hoje: A gente temus pressa, disse-lhe Socorro, porque quem tem fome tem pressa.
               Segundo a narrativa de Zuenir Ventura o prefeito nada fez por Socorro e quem teve que resolver o impasse da situação foi o senador Eduardo Suplicy, que tirando dinheiro do próprio bolso exigiu que todos os presentes fizessem o mesmo, entre eles o prefeito e os secretários. Com o dinheiro foi possível comprar 300 pães e alugar um caminhão. Havia mais de 200 famintos esperando pela volta de Socorro, sob o sol escaldante do começo de tarde. E Zuenir espantado relembra: Eu nunca tinha visto tantas pessoas juntas com fome.
           A vitória de Lula leva Zuenir de volta ao trevo da memória, lugar onde reencontra Socorro, nordestina, faminta, 32 anos, nove filhos. Líder oral de poucas palavras, seca de corpo e de linguagem, feito um personagem de Vidas Secas, feito Fabiano e a saga desgracenta dos retirantes, feito Macabéa na Hora da Estrela, numa incômoda economia lingüística de saliva, onde o sol racha a pele e água é salobra como a própria língua, que de materna só tem dois seios murchos que mal alimentam.
               As histórias que provêm da memória sobrevivem ao esquecimento para serem contadas, ouvidas e (re)vividas. Contar e recontar a história de Socorro, Zuenir e Lula é uma maneira de perpetuá-los para além de nós - para as gerações futuras. E a junção destes discursos – oral (Maria do Socorro) e escrito (Zuenir Ventura) - insere-se no cotidiano da escola como texto legítimo de toda uma coletividade que historiciza e significa o mundo na e pela experiência. A experiência que está no trabalho e está nas idéias, e que por isto faz-se híbrida fusão entre “saber” e “fazer”. A palavra “idéia” não aparece aqui como parte de uma concepção platônica, mas sim como parte constitutiva desses saberes , que mesmo escolarizados, desejamos mais espontâneos.
               Na escola, o exercício da narrativa é um importante passo para a descoberta da Literatura com gosto e da História com gosto. Pois quando narramos abrimos espaço à observação do dizer, das palavras em si e também do que há de entrelinhas nesse discurso e o que há de contexto ideológico produzindo esse discurso. Quem escuta tem a possibilidade de refletir sobre o que está sendo dito, concordando, discordando, problematizando.
              Nos sentimos mais aconchegados quando há uma voz por perto. Quantas vezes chegamos em casa sozinhos e ligamos a TV, não para assisti-la, mas para escutar a voz de quem quer que seja. A TV acaba tendo esta função meio uterina de nos livrar da solidão, mesmo que também ficcionalmente. Pois através da voz afetamos e somos afetados. A voz anuncia a nossa alegria, a nossa esperança, o nosso desejo diante do mundo. E é ela ou sua ausência que pode denunciar o sofrimento, o inconformismo, a exclusão. A voz é instrumento da narrativa, principalmente na sua forma primitiva: o oral.
             Ao contar ou narrar uma história da Literatura, da História ou mesmo um fato do cotidiano, o “efeito sonoro” causado pela voz do professor, cria um clima – uma atmosfera de proximidade. Para os ouvintes, este efeito une a realidade do mundo à fantasia ou o contrário, o mundo da fantasia à realidade do mundo. Ouvir atentamente a voz do outro é tão necessário quanto falar para o outro. Este “mover-se” também exige de nós abertura ao diálogo. Paul Zumthor (1985), pesquisador da poesia oral medieval, nos diz que o uso da voz nos fortalece. Para ele:
               A voz não traz a linguagem: a linguagem nela transita, sem deixar traço (...) Na voz a palavra se anuncia como lembrança, - em – ato de um contato inicial, na aurora de toda vida e cuja marca permanece em nós um tanto apagado, como a figura de uma promessa (...) Cada sílaba é sopro, ritmado pelo batimento do sangue; e a energia deste sopro, com otimismo da matéria, converte a questão em anuncio, a memória em profecia, dissimula as marcas do que se perdeu e que afeta irremediavelmente a linguagem e o tempo. Por isso a voz é palavra sem palavras, depurada, fio vocal que fragilmente nos liga ao único. (13)
             Narrar uma história ou a sua própria história é um exercício de memória e de linguagem. Benjamin (1994) denuncia que a experiência da arte de narrar está em vias de extinção e poucos são aqueles que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (197-198)
             Para Benjamin a experiência está em baixa, bastando olhar um jornal para perceber sua crescente desvalorização e decadência, num processo em que o mundo exterior e o mundo ético sofreram transformações antes inimagináveis. Relatar as experiências fazia parte de uma prática social espontânea, em que os vários sujeitos de um grupo ou de uma comunidade exerciam o seu direito à fala e ao pensamento numa troca cotidiana e contextualizada.
            É possível que o nosso relato da experiência tenha perdido o caráter do convívio social, do exercício mútuo do falar e ouvir, aprender e ensinar, tamanho o individualismo e a dificuldade em lidar com o que se torna cada vez mais alheio. E para Benjamim, isto é percebido a cada manhã, quando recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, ainda continuamos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. (1994, 203)
          Torna-se evidente, como bem coloca Benjamin que, a arte narrativa venha perdendo ao longo do tempo a ampla espontaneidade do seu exercício. Simbolicamente, a ampulheta e o tempo espesso da areia foi trocado pelo tempo escasso dos ponteiros. Não há tempo a perder, o tempo foi capitalizado: o tempo vale dinheiro, pagamos e recebemos por ele. Pagamos pelo “ tempo do estacionamento”, pelo “tempo do lazer”, pelo “tempo do almoço e do jantar”, “pelo tempo do consumo”. E quando temos “trabalho” recebemos pelo tempo gasto e agradecemos o que pouco resta: hoje não, estou ocupado. Mas ainda assim – na sobra do tempo - resiste dentro de nós um vontade inexorável de “contar” e “ouvir” histórias, como no tempo, parece que cada vez mais “antigo”, dos nossos avós. De onde vem essa vontade? Como conjugá-la com as nossas faltas?
           A narrativa está na aprendizagem com e do desejo. Tomo aqui de empréstimo o conceito benjaminiano de narrativa. Para Benjamin (1994) a narrativa é uma forma artesanal de comunicação; é como tecer, como fiar. Em alguns momentos Benjamin chega a usar o conceito de narrativa como sinônimo mesmo de “contar histórias”. Por isso, em seu texto Narrador, ora utiliza um termo, ora outro. O que farei também aqui. O fato de Benjamin não desassociar o contar do narrar nos leva a pensar numa figura mítica de narrador: o contador de histórias, que fará do ato de contar uma prática de cunho milenar, transmissora de um conhecimento ancestral, que baseado na reminiscência, levará adiante o fiar de um tempo de múltiplas vozes e experiências. Para Benjamin (Ibidem, 221) :

(...) o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer)..

         Ao nos depararmos com a velocidade do mundo moderno, que usa como slogan “a imagem que vale mais que mil palavras”, a narrativa oral das nossas experiências, espremida entre o poder das “telinhas”, chega a perder parte do caráter espontâneo de algumas de suas características fundamentais: o senso lúdico, o prazer de ver e ouvir, a contação, o jogo entre concentração e desconcentração, a expressividade do corpo que fala e dança.
        Com o contínuo avanço da tecnologia e das maravilhas eletrônicas parecíamos ter encontrado um mundo perfeito. E há que se dizer que o mundo avançou deveras. Só que este mundo “quase” perfeito avançou também na miséria humana, no desgaste das relações sociais, nos bolsões da pobreza, no descaso dos poderosos, nas filas dos condenados, no esvaziamento dos sentidos. Diante desse vazio e a da necessidade de re-significar, a narrativa oral e a memória assumem novamente, entre nós, grande importância contextual, no sentido e na emergência de preencher esses vazios. Nos dias de hoje, em que tudo nos parece “consumível” e “descartável”, incluindo as relações entre as pessoas, o papel significativo do narrar e da memória discursiva, acaba tomando diferenciadas finalidades, criando novas interações comunicativas, aproximando-se de outras linguagens.
       E aos poucos, analisando também esse vazio existencial individual e coletivo, com boa dose de esperteza e criatividade, os produtores de TV, de alguns jogos eletrônicos, como os RPGs (Role Playing Games) e as redes de sites de relacionamentos (Orkut), se debruçam sobre a necessidade de rever o lugar da narrativa no mundo contemporâneo, procurando então unir o fascínio da imagem à função cognitiva da narrativa.
       A escola “lentamente” também vem vivendo este processo de apropriação ou re-apropriação do narrativo e do narrativo-lúdico, principalmente na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. E nesse movimento de reconquista da narrativa, vai se percebendo que a prática e os processos de significação do discurso oral são potencialmente criativos e mobilizadores: quem conta ou ouve sente-se mais fortalecido para narrar, escrever e ler sua própria história ou inventar outras. Porque inventar é preciso. Drummond dizia no poema Infância: Minha mãe ficava cosendo
              Olhando para mim (...) Lá longe meu pai campeava no mato sem fim da fazenda .
              Eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé. (1999,10) As histórias reais e ficcionais ou ainda seu “meio termo”, até mesmo porque ficcionamos o real, não podem estar somente remetidas, vinculadas aos livros didáticos ou aos ícones literários e históricos. As nossas histórias singulares podem também ser contadas e escritas por nós mesmos, por nossos alunos – através da nossa memória, das nossas reminiscências com suas fraturas e ressentimentos, das nossas experiências de vida e das nossas expectativas de mundo.
            E a memória da infância é um dos acessos a busca incessante do homem pela significação do mundo. É o Santo Graal de cada um. Por isso nos lançamos ao passado feito Percival, tentando muitas vezes recompor nossa linhagem. O discurso memorialístico da “infância”, o “contar histórias”, “o refletir-se na história do outro” reascende o fogo primitivo que sobrevive no sujeito em meio à massificação das informações que ele recebe em seu cotidiano.
           Através do envolvimento entre a leitura literária e o discurso oral que narra as experiências do cotidiano, chegamos ao tempo da busca, busca por uma consciência crítica diante do mundo em que vivemos e da “literatura e da história escritas dos vencedores”. Nesse cruzamento nossas memórias e experiências se confundem para atravessar nossas histórias singulares. Nesse propósito somos tomados de questionamentos que nos levam a conviver com o acontecimento. E é o acontecimento – esperado ou inesperado - que nos coloca em contato direto com a lógica do outro, confrontando-a com a nossa lógica, numa relação potencializadora e dialógica de dizer o que não foi dito ou ainda de dizê-lo, recuperando outras vozes, porém, de maneira quase sempre questionadora, crítica. Esse movimento é que nos impulsiona numa busca significativa e constante, que é a de sermos leitores incondicionais de nós mesmos. E o que poderia sugerir apenas uma posição solitária, torna-se ato coletivo, conflitante sim, mas repleto de descobertas. Por isso gostamos tanto de nos contar. Porque contar, narrar nossas memórias nos fortalece. O uso que fazemos da linguagem nos instrumentaliza para reagir, para resistir à acomodação, à inércia. O “não-uso” da linguagem é o que nos fragiliza. Por isso precisamos de todos. Precisamos ser ouvidos e precisamos falar. Precisamos contar nossas histórias e as histórias inventadas ou que inventamos. E isso faz pelo exercício do discurso oral. Como diz o escritor Mário Vargas Llosa, no livro A senhorita de Tácna (1981):
          Como para as sociedades, para o indivíduo também (o contar estórias) é uma atividade primordial, uma necessidade da existência, uma maneira de suportar a vida. Por que o homem necessita de contar e contar-se estórias? Talvez, porque (...) dessa forma luta contra a morte e os fracassos, adquire uma certa uma certa ilusão de permanência e desagravo. É uma maneira de recuperar, dentro de um sistema que a memória estrutura com a ajuda da fantasia, esse passado que quando era experiência vivida tinha a aparência do caos.
           Vários foram os autores que teorizaram sobre as aproximações e os limites existentes entre a história e a literatura, ou ainda sobre essas senhoras tão intrigantes, como as chama Marisa Lajolo (1995) quando reflete sobre os tipos de entrelaçamentos entre esses saberes no estudo do texto literário:
             O texto literário como documento da história ou a história como contexto que atribui significado ao texto literário são caminhos que podem colidir no congestionamento da mão única por onde enveredam. Neste sentido, reflexo, expressão, testemunho, articulação, influência e termos similares são o léxico que costuma vincular o texto literário ao que há de coletivo e social para aquém e para além de suas páginas. Aliás, a escolha de um ou de outro termo já implica não só menor ou maior grau do entrelaçamento postulado entre literatura e história, como também e sobretudo o modo como se postula tal entrelaçamento.(21)
             Exemplificando esse entrelaçamento, escolhemos um texto literário que também é registro documental da história: a Carta a El-Rei Dom Manuel (1500) A carta de pero Vaz de Caminha aparece no conteúdo dos livros didáticos de literatura, segundo a periodização literária, como o primeiro e mais importante texto literário do “quinhentismo brasileiro”. Caminha, sendo o principal cronista do Rei de Portugal, tem como função detalhar minuciosamente as características naturais, as riquezas da “nova terra”, assim com também descrever “fisicamente” e “culturalmente” o povo que nela habitava. Isto ele faz a partir de uma visão etnocêntrica do europeu colonizador. No entanto, a arquitetura do que seria um texto descritivo, por vezes, ultrapassa esse papel para desembocar numa rica e instigante narrativa literária. É o que tentaremos exemplificar com trechos da própria Carta (Roncari, Luiz. 1995, 29-39):

Senhor,

posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer!
Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.
(...)
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.
(...)
E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes, e foram-se para cima.
(...)
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.
(...)
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha.

             Na Carta de Caminha podemos perceber que há todo um processo narrativo literário que aflora e que se antecede à “descrição pela descrição”, assim como evidenciado se faz o contexto histórico, através da sua extrema definição discursiva.
            As marcas da autoria são plenamente visíveis na forma como Caminha adjetiva a terra e os nativos. Suas impressões subjetivas, poderíamos até chamar de indícios digitais, se mostram presentes naquilo que lhe agrada, desagrada ou que lhe desperta interesse para além das evidências do texto. Estão nas evidências e nas entrelinhas. O subjetivismo de Caminha diante da natureza exuberante da terra e do nativo, que é ao mesmo tempo bonito e ingênuo, já antecipa, guardando as devidas proporções, a nossa perspectiva romântica indianista. Na escrita de Caminha está o gérmen de Iracema, Ubirajara e Peri, os índios e heróis revestidos pela cultura européia do nosso Romantismo.
            A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. (...)
           Concomitantemente a uma visão subjetiva diante daquilo que está sendo visto, a Carta de Pero Vaz de Caminha marca com determinada objetividade o início do contato superior que se estabelece entre o mundo português, pretensiosamente civilizado, e o da nova colônia de exploração, marcando assim a dependência cultural superior selada pelos olhos do mundo europeu. O nativo bonzinho, hospitaleiro, gentil, o exotismo da terra tropical e das mulheres “desavergonhadas”.
          Esta carta trouxe-nos a possibilidade de conhecer a primeira impressão do colonizador em nossas terras e, sem dúvida, observar que o que prevalece é uma atitude de “aparente compaixão” mediante a presença daquilo que eles consideravam “índios”, quando na verdade nem nas Índias estavam. O português ao chegar em nossa terra, chega com um ideal basicamente econômico. É claro que não podemos também ignorar o ideal religioso. Na Carta, o cronista antes da análise geográfica, diz que o que de melhor havia nessa nossa terra, era o seu povo e que cabia ao rei fazer de tudo para “salvá-lo”. Salvar o povo consistia basicamente colonizá-lo tendo por molde o pensamento europeu etnocêntrico. É o pensamento do explorador impondo-se ao pensamento que eles tanto chamam de exótico. A superioridade estabelece-se desde já na colocação de um pensamento sobre o outro, depois de uma língua sobre a outra e de uma economia sobre a outra. Tudo gira sempre na colocação de que a Europa é o centro do mundo e Portugal o país, naquela época, que tem a principal função de difundir suas idéias de dominação pelo mundo. Poderíamos nos perguntar: será que isto é coisa somente do passado?
              Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!
            Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. (...)
            Salvar esta gente? Quantos questionamentos podem surgir daí, desta frase tão curta, mas ao mesmo tempo tão forte e ainda tão atualizada? Podemos assim, utilizar o texto de Caminha, tanto nas aulas de literatura como também nas aulas de história, de geografia, de biologia, de filosofia. Nestas relações reside a importância de um contexto histórico, quando este não vem desassociado do texto, quando não aparece distanciado, por vezes numa cronologia esvaziada de significados. Através da leitura do texto de Caminha podemos evidenciar a forma como um pensamento histórico europeu de superioridade poderá refletir na forma como vivemos e vemos o mundo de hoje. Dessa maneira o texto literário pode ser trabalhado em sala de aula como motivo para argumentação e para a reflexão. Podemos assim estreitar a relação dialética e dialógica entre a literatura e o cotidiano, entre a literatura e a história.
              A literatura na escola ou a vivência com a literatura na escola está impregnada de representações que foram feitas ao longo de muitas teorias sobre o que é a literatura. E a visão mais usual é a de que a literatura é o retrato datado da sociedade através das épocas, cada uma com seu estilo. Então, dentro dessa concepção, ela só poderia estar muito atrelada a uma reconstituição histórica linear que atravessa com suas datas e características uma teoria literária burocrática voltada para uma literatura “de manual”, que tem apenas como função o papel de descrever e exemplificar os contextos datados por meio dos períodos literários.
              Meu interesse neste texto, sobretudo defender a idéia de que a ação interdisciplinar entre a literatura e a história, poderá vir a oferecer uma melhor possibilidade de diálogo entre os textos literários e os leitores-educandos e os leitores-educadores. E a partir disto, desta relação empírica com o texto literário, provocar o pensamento crítico e criativo desses sujeitos da escola, provocando também a criação de novos textos, de novas narrativas – individuais e coletivas. Não quero afirmar com isso que a escola tenha o dever de formar historiadores ou poetas, escritores, mas que ela tem o importante papel de possibilitar o encontro do sujeito com a palavra – na oralidade e na escrita, com a ajuda da literatura, da história, e dos outros saberes – não de uma forma fragmentada e inconsistente, mas por via do desejo legítimo de apropriação desses conhecimentos, que até hoje não foram devidamente democratizados neste país.
             Podemos verificar que tão importante quanto trabalhar as características de gênero e estilo da Carta de Caminha em sala de aula, é também trabalhar, de forma crítica e contextualizada, este texto literário enquanto documento da vida dos homens. Isto possibilita aos nossos alunos um mergulho na leitura de mundo através da palavra.
            Gonçalves Filho (1990) reflete sobre “educação e literatura”, focalizando o texto literário como mediação para articulação de situações existenciais e históricas do presente, articulando-as com as situações existenciais e históricas do passado. Para isso, diz ser preciso superar o ensino da literatura que se concentra apenas na apresentação linear da história literária, como se ela fosse também apenas uma sucessão cronológica de estilos e figuras. E faz essas reflexões, baseando-se no que ele compreende ser a literatura que se situa no plano da emoção, cuja “teoria” compreende uma estética da paixão, do artesanato do estranho, daquilo que nos causa espanto e admiração. (38)
              Paulo Freire (1987) sobre as situações-limites nos diz que elas se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa senão adaptar-se. E afirma que para alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem o desaparecimento da opressão desumanizante, é imprescindível a superação das situações-limites em que os homens se acham quase coisificados. (94-95) Resistir às situações-limites está na busca do “ser mais”. Está no inconformismo que nos mobiliza para a mudança. Está na idéia do homem como ser inconcluso, consciente de sua incompletude.
               Nesse dialogismo, Guimarães Rosa em suas Veredas (1986), nos traz o que poderia também ter sido dito por Paulo Freire: O senhor...Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. (374) E com Bakhtin (2000, 33) poderíamos pensar numa espécie de continuidade do texto de Guimarães Rosa:

Se eu mesmo sou um ser acabado e se o acontecimento é algo acabado, não posso nem viver nem agir: para viver, devo ser inacabado, aberto para mim mesmo – pelo menos no que constitui o essencial da minha vida -, devo ser para mim mesmo um valor ainda por-vir, devo não coincidir com a minha própria atualidade.

Acredito ser relevante o fato de refletirmos, com base – seja no discurso freireano ou bakhtiniano, ou mesmo no diálogo entre ambos e com outros teóricos e escritores, como Gonçalves Filho e Guimarães Rosa, as possibilidades e a potencialidades existentes no ato de relacionar a literatura com o que se vive, nisso incluo a história, numa ação dialogada, pois a literatura está na vida, e a vida como disse Todorov (1981,149) é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo, interrogar, escutar, responder, concordar etc.

          A atração pela literatura deveria começar com a voz, o olhar da urgência do diálogo, de sentir o livro com todos os sentidos, com a energia que é vida e que advêm dos nossos desejos. É que a imposição da leitura literária, vinda de forma verticalizada, transforma o gosto de ler em desgosto de ler e até o mesmo o gosto de falar em desgosto e silenciamento.
          Descubro então que o essencial do trabalho com a literatura é o que escapa ao próprio texto para dialogar com o leitor. Mesmo porque o que se chama de magia da literatura está no encontro e nas entregas entre o texto (oral ou escrito) e o leitor. Mas cada vez que o leitor retorna ao texto lido, ele não o retoma como o mesmo leitor. Um livro tem muitas chaves. E qualquer que seja o livro, ele não poderá ser lido mais de uma vez da mesma maneira. Isto porque o sujeito leitor não será mais o mesmo nas duas ou mais leituras feitas do mesmo livro. Ele partirá sempre de outro lugar, com outro conjunto de lentes. Ele será outro leitor, e conseqüentemente, lerá um outro livro no texto revisitado. E a cada leitura, novas leituras das realidades serão feitas. O leitor poderá observar o que antes não tinha visto por pressa, distração ou esquecimento. A leitura torna-se então uma relação dúbia de entrega, habita na ambigüidade de um leitornão mais passivo diante do que lê, mas criador dos seus caminhos. Estará então, caminhante, diante de um universo a desvendar - que é o texto vivo, o texto em fruição.
            Exemplo de uma singular e desconcertante fruição textual podemos vivenciar enquanto leitores com “Um ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. Numa primeira leitura, apanhados por uma linguagem desafiadora e “não-linear” somos convidados a ir, voltar, ir de novo, estranhar aquele fluxo narrativo e ainda ao mesmo tempo somos apanhados pela reflexão sobre as diversidades de uma sociedade que é excludente, desumana, sectária e que, ao ser tomada por uma epidemia de cegueira, passa a lidar com seus “cegos” com a força do domínio, da manipulação, da brutalidade, da tortura, de todo tipo de violência. Uma sociedade de cegos que em determinado momento precisará reaprender o valor da confiança e da partilha. Ao lermos Saramago nos deparamos ou nos chocamos com a proximidade entre ficção e realidade, entre a arte literária e os elementos históricos que permeiam a sociedade. O livro de Saramago nos mostra uma história carregada de estranhamentos, contradições e paradoxos, refletindo em singular esse nosso drama tão moderno (ou poderia dizer de todos os tempos) do homem amarrado a um mundo desconcertantemente desumanizado e desumanizante, materialista, pleno de angústias individuais e coletivas. Um mundo feito de incertezas em face de um amanhã marcado de guerras, fomes, desvalorização de moedas, desvalorização de pessoas e tantas outras aflições universais. Afinal, que humanidade é esta senão a nossa?
               A narrativa de Saramago é certamente uma narrativa que dá muito trabalho ao leitor, pois ela não conduz, não venda ou guia o leitor. Goethe dizia que ler é o ato de desatar nós cegos. Podemos pensar a frase de Goethe num contexto polissêmico em que “nós cegos” podem ser os nós difíceis da vida, os “nós” da garganta, os “nós” pelo corpo; ou ainda podemos pensar em “nós cegos” a partir de algumas cegueiras que desenvolvemos em relação ao mundo que vivemos. Ler não é apenas decodificar os códigos da língua. É também desfazer os nós cegos de uma não compreensão sobre isto ou aquilo. É poder enxergar no fora o que vai por dentro ou vice-versa.
                As experiências da leitura literária, escolarizadas ou não, nos permitem, alunos e professores vivenciar inúmeras possibilidades de compreensão dos textos e a partir deles ampliar nosso conhecimento do mundo, da história, da antropologia, da sociologia... As aulas de literatura e das outras disciplinas têm outro sabor quando os textos, principalmente os literários, tornam-se vivos através de suas tantas vozes. Como a voz da professora Helena, professora de história, que gentilmente, nos cedeu essas palavras:
                Adoro ler. Sempre gostei de ler. Leio muita coisa da minha área por necessidade, porque a gente não pode parar no tempo, não é mesmo? Mas, ás vezes, dou uma escapadinha pra ler um romance, uns poemas. (...) Acabo trazendo pras minhas aulas esses textos. Acho que assim a gente enriquece o olhar pra realidade, e é um olhar mais sensível, mas ao mesmo tempo mais crítico. Mas o importante mesmo desse nosso trabalho é ter amor, sentir amor... Porque, sabe, quando a gente se relaciona com uma disposição pra amar o outro, tudo funciona melhor.
            A literatura, assim com a educação artística, a história, a geografia, a sociologia, a filosofia, têm olhares ora semelhantes, ora diferenciados sobre o mesmo objeto: a humanidade, o mundo. E quando trabalhamos essa relação transdisciplinar na sala de aula, realmente enriquecemos o olhar. Como disse Helena, nos tornamos críticos sensíveis das realidades que nos cercam.
            Aprendemos do mundo, da sociedade, das relações, quando nos entregamos às descobertas dessas e tantas leituras conjugando liberdade e alteridade. Por isso, humanizados, podemos acreditar no outro quando também amamos, como diz a educadora, porque assim podemos acreditar nas nossas relações sociais e compartilhar nossas memórias e nossos sentidos. Pois o essencial na aprendizagem, seja da literatura, seja da história ou das duas interligadas, é o que fica e o que, de repente, transcende como significância de mundo.
            Mas muitas pessoas, em muitos lugares, ainda vêem a leitura literária como uma fuga do cotidiano, fuga da realidade, como um “pântano poético de subjetivismos” ou como uma viagem a um país estrangeiro, e se esquecem que o mais surpreendente da literatura é justamente a capacidade de traçar paralelos entre o texto e a vida. A leitura literária torna-se interessante ao aluno do ensino médio quando, de alguma maneira, se aproxima da sua narrativa de vida. Não há envolvimento sem um sentido prático que aproxime a literatura da vida. Proust dizia que quando lemos um livro encontramos pessoas que já conhecíamos. E dialogando com este pensamento proustiano, poderíamos também dizer que nos encontramos com nossas humanidades ou desumanidades, com nossas misérias, nossas fraquezas, nossas falências e esperanças. Como ler Dostoievski ou Maiakovski sem esbarrar na nossa própria natureza ou desnatureza humana? O quanto de nós existe num “homem do subsolo”? O quanto de nós existe nas paredes escritas com os versos de sangue de Maiakovski? A literatura nos leva a esta possibilidade, também polifônica, de encontrar nas narrativas escritas, o sentido de nunca estarmos sozinhos no nosso próprio narrar, mas sim impregnados por palavras-símbolos que já foram pensadas, ditas e repetidas, ás vezes exaustivamente repetidas. Quantas vezes, em quantos tempos históricos e literários, nós humanos, “re-clamamos” por liberdade?
                     Mas para lutar em nome da liberdade, não podemos privar o outro da sua própria liberdade ao lhe conceder meia-liberdade. Precisamos de uma educação popular que busque mais que meias-liberdades. Pois para haver liberdade é preciso conviver com sujeitos autônomos, capazes de se expressar livremente na fala – na leitura – na escrita, sem as amarras deste ou daquele sistema, sem medo, sem a violência do olhar que menospreza, sem a prepotência e a arrogância daqueles que se acham superiores e que, com perversidade, calam a voz, estrangulam a palavra do outro. Existe em nós um grande desejo de falar, de sermos de fato a nossa linguagem. E há uma vontade de “ser” através da materialidade dessa prática. E o silenciamento pode sim nos causar uma grande imobilidade, pois se todo discurso é lugar de conflitos, o silenciamento é lugar de opressão, principalmente pelo uso punitivo da palmatória verbal.
                     Em sala de aula, estamos em constante interação, em constante diálogo com os outros e com as falas impressas dos livros. Como pensa Bakhtin (1986, 123), o livro também é um instrumento de comunicação. O livro, isto é, o ato da fala impresso, constitui igualmente um elemento de comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo (...) Por isso mesmo ao trabalharmos com a leitura literária não podemos continuar pensando a linguagem escrita longe da oralidade, a oralidade longe da memória - como etapas apartadas. Há muito tempo a literatura vive a narrativa oral, coabitada por ela, coabitando nela. Temos Graciliano Ramos, José Lins do Rego, João Ubaldo Ribeiro e tantos outros escritores e poetas que viveram e vivem todo um processo que oraliza a narrativa literária.
                    A fala de Riobaldo, personagem de Grande sertão – Veredas (Rosa, Guimarães. 1986, 4) nos coloca nesse redemoinho que é a vida e a linguagem, no redemoinho dos olhos – e até dos ouvidos - no diálogo com o livro:

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. (...) Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, esse vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemoinho...

              O diabo na rua, no meio do redemoinho... Neste trabalho relacional e contínuo com a linguagem nos formamos e somos formados. “Na verdade não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.” (Bakhtin, 1986, 95) Podemos ainda lembrar Sartre quando diz que “palavras são como balas”. No universo da Polissemia, a palavra é a bala que machuca, humilha e mata. Mas é também a bala que ao deslizar na língua, adoça o paladar, repara o mal e unifica os homens. As palavras mudam, renovam-se de mudanças. Nós também mudamos, porque mudar faz parte da nossa constituição, da nossa subjetividade.
                Educadores e educandos são seres de linguagem. Nos encontros da sala de aula, o uso que fazemos da palavra e sua associação com a literatura podem vir a intensificar a possibilidade de contra hegemonia diante dos resquícios dos modelos opressores que visavam senão o acúmulo ou a alienação. Nesse posicionamento, faz-se necessário compreender o aluno como sujeito criador e pesquisador das palavras, capaz de discutir e construir novas significâncias discursivas na sua relação com o mundo, na sua relação com o outro e na sua relação com os textos.
               A escolarização doutrina, cerceia, seleciona e combina, ritualiza. Mas essa mesma escolarização pode nos colocar diante de um horizonte de possibilidades, de lugares de resistências, de lugares de interação, de lugares possíveis. E a linguagem pode ser um instrumento de crença em mundos possíveis, tanto que não poderia passar despercebida pelos que disseminaram intolerância e domínio. Na história do mundo e dos povos, a língua, as linguagens sempre foram a primeira terra a ser salgada, violentada, devastada quando há dominação de uma nação sobre a outra.
            Minha língua é minha pátria? Certamente, minha língua é o que antes me identifica como brasileira em qualquer lugar do mundo. Mas de qual língua realmente estamos falando? Com qual língua falamos? Que língua é a nossa de tantos brasis dentro do Brasil? Que linguagem brasileira é esta com recursos de um universo também tão peculiarmente diversificado?
            Assim, quando falamos em linguagem oral e “oralização” da literatura, comumente nos deparamos com uma pretensiosa e frágil desvalorização dos conceitos dessas práticas. Ao que pode parecer, aos olhos e ouvidos menos atentos que estamos falando de novidades, modismos; quando na verdade, as novidades foram senão precursoras de tantos outros movimentos posteriores a elas. O que pode haver é uma re-significação desses lugares.
           Tanto a narrativa oral quanto a leitura da escrita e o mundo visual das imagens são ferramentas capazes de potencializar o fluxo da memória e da criatividade nas nossas formas de aprender e (com)preender a linguagem - fora e dentro da escola. São movimentos descontínuos no exercício da própria linguagem, movimentos estes que se inter-relacionam dialeticamente e dialogicamente: lendo, escrevendo, falando, ouvindo ler (Chartier 1995) .
           Ler, falar, escrever são práticas da linguagem, da expressividade, da diversidade léxica, da diversidade semântica. Priorizar apenas uma das práticas da linguagem, desvinculada das outras, é recusar-se a ver a significância de todo um processo, que nunca foi e nem será aprendido e compreendido seguindo regras “etiquetadas”: primeiro o aluno só fala – depois ele lê e não pode falar mais – e por último, ele escreve o que se manda escrever.
            Pois para vivenciarmos a diversidade textual que existe ao nosso redor, precisamos mais que olhos, precisamos compreender com todos os sentidos. Fazemos isto através da leitura do sentir, da sensibilidade, do sabor ou do dissabor das coisas que permanecem em nós, em nosso imaginário, na nossa memória, numa fruição ininterrupta. Assim fazemos com as leituras que vamos fazendo ao longo da vida, interligando-as a partir de uma memória funcional e/ou afetiva. Nesse sentido, aprender a ler é ter acesso a um mundo distinto em que a oralidade se instala e se organiza (Silva, 2002,63).
          Quando lemos, falamos ou escrevemos entramos em sintonia com a realidade e/ou com a imaginação, unimos passado, presente e elaboramos perspectivas para o futuro. Como sujeitos históricos e sociais que somos, lemos, falamos ou escrevemos sempre de um determinado lugar, de um determinado tempo, com determinadas concepções de mundo. Toda nossa leitura está impregnada de impressões muito pessoais, subjetivas; mas toda nossa leitura parte de uma cultura socializada, na qual, ideologicamente, as palavras também simbolizam um universo coletivo.
           Os textos, principalmente os literários, estão marcados por valores éticos, estéticos, políticos, culturais, religiosos. Os textos históricos também. Os estudos da historiografia têm se debruçado sobre essas marcas sócio-temporais dos documentos históricos, na tentativa de encontrar indícios cada vez mais preci(o)sos sobre as formas de viver das sociedades.
            A leitura literária é a ventania que varre o que foi pré-estabelecido pelo(s) próprios autor(es), desmistificando a crença de que o passado é apenas fóssil a ser medido e catalogado. O leitor reascende o fogo das palavras que adormecem em livros fechados. A leitura torna-se, segundo esse ponto de vista, o que re-significamos com a memória e com a experiência. Mas não estamos falando aqui de uma leitura esvaziada ou imposta. Para provocar reflexões, questionamentos, inquietações, é preciso que se faça da “leitura de mundo”, uma leitura de possibilidades, capaz de trazer para a sala de aula, através da leitura, seja da literatura, seja da história ou das demais disciplinas em correlação umas com as outras, uma multiplicidade de vozes representada pela diversidade que se revela por meio de marcas temporais, espaciais e socioculturais.
           A leitura está contida na linguagem, assim como a oralidade e a escrita. E a linguagem é um construído social, é um espaço de diálogo onde as pessoas se contradizem, erram, acertam, mediam, entram em conflito com o outro e consigo mesmo. E a linguagem é política porque é um fazer, porque somos e “fazemos” através da linguagem.
             A oralidade, a leitura e a escrita são lugares com os quais interagimos com a linguagem. Somos seres criadores dos mais diversos discursos e das mais diversas palavras. E é através das palavras que nos comunicamos, que nos relacionamos. Bakhtin (Ibidem, 108-112) nomeou como dialogismo essa relação constituída no limite entre o meu discurso e o discurso do outro. O ato comunicativo que parta de um princípio dialógico seria então uma ponte entre mim e o outro, quando lanço minhas palavras ao outro, espero que ele, as compreendendo, sinta-se estimulado a responder instigando-me a falar novamente. Dessa maneira, quando interrompo a resposta do outro ou respondo por ele, bloqueio a comunicação e caio nas teias dos monólogos disfarçados de diálogos. Segundo Bakthin, a linguagem é, sobretudo, um fenômeno social, histórico e ideológico. Para ele, a linguagem, assim como a consciência, não está apartada, inerte, distanciada da existência humana. Ela é uma expressão dessa existência e se faz na alteridade, perpassada pelos conflitos e pelos acentos peculiares inerentes à dinâmica comunicativa dos falantes.
               Quantas vozes existem dentro de nós? Uma infinidade por certo. Assim nascem as narrativas orais – dos fios que tecemos com as vozes que nos habitam: a voz do passado amalgamado às vozes do presente e da esperança de futuro. Esse fino e frágil tecer que cortamos com as próprias mãos e não com as mãos das parcas - chama-se oralidade. Esse fio que pode ressurgir como uma intimidade com a nossa história singular é o mesmo fio que tece o tempo que está nós. E para onde vão as histórias que não registramos? Elas permanecerão a espera de alguém que apareça para acordá-las, alguém de um tempo novo. Os filhos, os netos, um aprendiz, um poeta, um contador de histórias.... Eles nos acordarão do tempo do esquecimento e nossas vozes seguirão com eles – na vida, na literatura, na história – sem querer ofender.

                    El tiempo es un problema para nos outros, um tenebroso y exigente problema, acaso el más vital de la metafísica; la eternidad, un juego o una fadigada esperanza.
(Borges, Jorge Luis in Histoira de la eternidad)



BIBLIOGRAFIA

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