Há bons anos passados, quando fazia uma pesquisa para a minha dissertação de mestrado, colhendo relatos de professores – ainda que de forma confusa, me deparei com esta expressão bastante peculiar: “(...)então eu uso a palmatória verbal”. Nenhuma pretensão aqui de colocar em análise a fala apartada de seu contexto original, pois seria algo, no mínimo, leviano. Porém a expressão, a força que trafega nela, é como a própria violência em forma de signo e, certamente, merece não apenas esta reflexão, mas outras mais consistentes. Mas se me aventuro por ora na compreensão do termo, creio que seja preciso certo despudor com as palavras, principalmente no que diz respeito a uma situação ontológica, aquela que revela em imagem, a criação e a manipulação do signo. Para tentar compreender uma metáfora é preciso adentrar nos interditos da linguagem, talvez criando com ela uma nova consciência. Assim uma imagem, ainda turva, e que surge de uma expressão como “palmatória verbal”, pode vir a desencadear uma nova série de outras imagens que aqui vou relacionar ao uso abusivo da força, ao uso constante da força, ao uso ilegítimo da força na relação entre aquele que ensina e aquele que aprende.
Imagens... Quantas compomos com as interdições das palmatórias verbais? Crianças são todas elas artistas, conhecem muito da poesia da descoberta. Os adultos é que se tornam presas de todo tipo de utilitarismo, até porque muitos foram bem educados e disciplinados pela tal “palmatória verbal”. Saramago disse certa vez que há crianças que crescem ao sol, mas há as crianças que crescem à sombra. Para as crianças que crescem ao sol e para as crianças que crescem à sombra, como para as muitas que conheci na minha trajetória de educadora, nada melhor que “poesia”, “teatro”, “música”, “imagens”, “arte”, o amor e aquela dose de boa loucura que transpassa todos.
Entretanto, nossa história humana é sem dúvida marcada por abusos da violência. Colonizadores, padres jesuítas, coronéis, militares, políticos corruptos, regimes opressores, tudo isso foi determinante para que chegássemos a certo “ethos” de educar, de transmitir, por vezes, violentamente, nosso conhecimento através das gerações. Muitas vezes não há como omitir a violência do silenciamento que possa ter vindo a forjar uma personalidade. Porém se pode utilizar essa força para outros fins que não estejam a serviço da violência. A arte é que nos salva. A arte me salvou. Mas não é fácil, tem mais a ver com um estado de atenção e consciência crítica que com o desejo de mudar, por mais profundo que este seja. Muitas vezes me pego lutando contra o meu desejo de agredir quem considero agressor. E por vezes sigo na contramão quando o mundo me cobra mais “agressividade” pra agir e conquistar picos e metas. Vejo muitos professores na mesma situação de perplexidade, perguntando a eles próprios: educar para qual mundo? O que desejo dentro do que desejam de mim?
Digo sempre que uma esperança está em saber que assim como fabricamos poemas, fabricamos respostas. Temporárias? Sim, como tudo. Somos finitos, por isso nossas repostas são provisórias e não podem mesmo representar um todo, já que são partes e pontes para o surgimento de outras perguntas e respostas. E por sermos finitos, precisamos responder sim, como também podemos reagir aos eventos, criando “ativamente” novos caminhos. Podemos agir e pensar sobre a educação, até mesmo para que indivíduos legitimados a usar a força – e que nunca conheceram nossa realidade – não nos roubem, não nos calem a voz. Se nos sentarmos “no tempo das perguntas” a espera do “tempo das respostas”, as respostas virão de outros, e por vezes de forma a estrangular nossa vontade, nossa potência. Somos seres reflexivos, por isso não podemos compactuar com a histeria sectária de um determinado modus dominante e que insiste na “palmatória do cala a boca”. Não deixar os dois pés nas nuvens e nem se enraizar de vez na terra firme é trabalho para equilibrista. Sim, é para utópicos. E se o desejo for nunca trilhar pelo terreno dos sonhos, talvez caiba buscar outras escolhas de narrativa.
A palmatória do verbo não é apenas um dos filhotes da desigualdade social e dos regimes autoritários, ela também pode se manifestar, de forma patológica e destrutiva, dentro das relações mais íntimas, as mais próximas e as mais afetuosas. Quando dissemos para além do lugar comum, que “educação começa de berço”, não há impropério nenhum nisto. Há toda uma vasta teoria e muitos estudos que podem nos ajudar a entender melhor esta trama. Há também a experiência - que é de todos: a de viver na carne as relações cotidianas, especialmente aquelas que colocam diante de cada um de nós, os sentimentos paradoxais da alternância, que de tempos em tempos nos convoca a mudar de posição e ponto de vista. Assim somos um dia filhos, no outro pais. Um dia, estudantes; no outro, mestres. Um dia jovens; no outro, talvez a voz da memória fugaz dessa época. Um dia vítimas; no outro, algozes. Não há de surpreender que também troquemos de lado se isso nos afeta. Não tenho em mãos nesse momento um número, uma estatística que comprove que entre pais e filhos, professores e alunos, pessoas e pessoas, ainda estejamos mais interessados em calar que ouvir. Intuo que ainda seja mais comum a pedagogia da palmatória verbal que a pedagogia da escuta, a pedagogia do reconhecimento, do elogio... Sobre elogio poderíamos abrir um capítulo à parte. O elogio que foi perdido “de berço” ou o elogio que foi trocado por outras moedas, parafernálias de consumo rápido, televisão, remédios para dormir, remédios para acordar. É claro que todo excesso traz danos, mas a escassez é tão danosa quanto o excesso.
Será que estamos preparados para compreender a angustia de ser criança? Será que estamos preparados para entender os medos que uma criança sente? Antes mesmo que ela construa suas próprias escolhas, muito já pode lhe ter sido negado. Está certo que as frustrações nos ensinam. Mas viver só de frustrações, o que traz de ensinamento? Negar o elogio merecido é negar oportunidades, é negar aberturas, é negar o outro. Não falo do elogio esvaziado de significados, o elogio da mesmice ou do puxa-saquismo. É certo que estamos mais para viver de invejas e insônias. Mas se estamos a aprender tantas coisas perversas na vida, porque não aprender a ceder, a exercitar o olhar, ampliando nossa capacidade humana de celebrar a potencialidade de uma criança, de um filho, de um aluno, de um amigo... Os pessimistas de ocasião abrirão bocas a decretar: “Vivemos um tempo de competição”, “isso é balela, é romance!”, “não nos serve!” Conheço meia dúzia deles e sei que eles fazem uso ruidoso e explicito da palmatória verbal.
Mas se há veto, contra o veto, a subversão, a ousadia da palavra que cria novas camadas numa outra complexidade, ainda que dentro das que já existem. Contra o abuso, a tomada de posição, a luta pelo direito a todo tipo de conhecimento. Seria, é claro, uma ingenuidade acreditar na extinção da palmatória verbal, mas vale acreditar que ela pode se tornar mais um entre os tantos outros obstáculos do caminho, e não a montanha intransponível a nos calar a voz, a nos silenciar a vontade de aprender e a vontade de educar. Não se trata de uma busca tardia por compensações, mas sim de um trato amoroso e po-ético com um dos mais belos significados da palavra aprendizagem: viver.
Patrícia Porto
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