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Poética da Linguagem: Um trançado de bilro entre entre oralidade, literatura e folclore.

Patrícia de Cássia Pereira Porto


RESUMO


O discurso oral é um tecido social coletivo. Somos herdeiros das tradições orais que formaram vários povos, herdamos das tradições simbólicas as histórias que tecem toda cultura oral nascida no seio da coletividade. As vozes que ecoam das classes populares, dos griôs, dos oprimidos, dos iletrados – é a voz da memória mítica que ao ressurgir como força motriz de uma memória coletiva nos faz mergulhar na nossa História brasileira feita de muitas histórias singulares silenciadas, sufocadas, interrompidas. Por isso a proposta deste texto nasce da busca por uma práxis transformadora que propicie a inclusão efetiva da prática da “oralidade” e da arte folclórica, bem como a conseqüente pluralidade de saberes que daí advém como processo de re-significação do passado no presente. Isto objetivando mostrar a criança como sujeito da sua própria cultura e história, autora das suas palavras. Propomos assim um discurso oral dialogado que enfatize a poética da linguagem na “escolarização da literatura” na escola.


Palavras-chave: Linguagem; Oralidade; Literatura; Folclore e Cultura Infantil.




Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui.(...)
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas.

(Manoel de Barros, Memórias inventadas)



         Miremos as crianças. São aprendizes de tecelãs, muitas trabalhadoras e arteiras desde a infância. É possível aprender com elas a importância das trocas simbólicas que habitam a arte de um conhecimento comum partilhado entre brincadeiras e desafios, entre a alegria e a espera, entre o que há de invenção, de imaginário e o que há de real e concreto no mundo vivido. Como na conhecida cantiga:
Ciranda Cirandinha
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta
Volta e meia vamos dar

O Anel que tu me destes
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou

Entre a brincadeira e a realidade, quantas crianças, nas rodas ou passando anéis em tempos diversos, já cantaram esses versos? Quantas vezes essas mesmas rimas foram repetidas? Inúmeras vezes por certo. Podemos perceber então que resiste na sobrevivência das brincadeiras de roda uma cultura infantil que traz entre seus elementos a literatura oral e a arte folclórica e que é essa a cultura que faz renascer nas brincadeiras infantis, em ambientes rurais e urbanos, antigas cantigas e trocinhas, que mesmo modificadas e por vezes “escolarizadas”, são novamente entoadas diante do enfrentamento dos sofrimentos do mundo ou diante da celebração das “bonitezas da vida”. Ciranda, cirandinha....Cantar para seus males espantar. Cantar e contar para não morrer, para zelar por toda uma existência humana, para resistir à aculturação. E é a memória a forma mais singular que encontramos para a preservação de uma cultura local. Assim a literatura oral que também pertence à arte do povo é patrimônio cultural de um coletivo e de sua ancestralidade.
A memória coletiva que está na fala, nos tecidos, nos bordados, na dança das agulhas, das ferramentas que forjam a possibilidade de um conhecimento comum e que está também nas narrativas orais, na poética da linguagem, na poética da realidade, nas relações sociais. Exemplo dessa poética pode ser encontrada nos poemas de Patativa do Assaré, como aquele sobre: “uma triste partida”

(...)Agora pensando segui ôtra tria,
Chamando a famia,
Começa a dizê:
Eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo,
Nós vamo a São Paulo
Vivê ou morrê.

(...)
Nós vamo a São Paulo, que a coisa tá feia;
Por terras aleia,
Nós vamo vagá
Se o nosso destino não fô tão mesquinho
Pro mêrmo cantinho
Nós torna a vortá (...)

Em riba do carro se junta a famia;
Chegou o triste dia,
Já vai viajá.
A seca terrive, que tudo devora,
Lhe bota pra fora
Da terra natá.

(...)Faz pena o nortista, tão forte, tão bravo
Vivê como escravo
Nas terra do su.

Literatura oral ou folclore? Qual seria a fronteira ou os limites que delimitariam o que é da cultura literária e o que é da cultura folclórica no poema de Patativa? A única passagem registrada do “poeta cantador” por uma escola teria sido aos doze anos de idade, onde ele permaneceu apenas por um curto período de seis meses. E partindo desse texto peculiar do panorama literário brasileiro, nos propomos a seguinte reflexão: como analisaríamos a “bagagem lingüística e cultural” de alguém que poderia vir a ser considerado, pelo prisma da educação formal, analfabeto ou mesmo analfabeto funcional, sem correr o risco de cair num tipo qualquer de estigmatização do que é “popular” na literatura brasileira? E se pensarmos nas salas de aula e na escolarização da literatura, caberia justificar apenas pelo uso da “licença poética” versos como estes: “Vivê como escravo/ Nas terras do su”, sem se levar em conta o contexto do poema? Ou seria o poema de Patativa usado nas aulas de língua portuguesa como pré-texto para correção ortográfica, exemplo das tantas variações lingüísticas no uso da linguagem informal?
No poema de Patativa de Assaré encontramos muitos pontos de aproximação com a cultura escrita. Assim demonstrando que o poeta cantador de Assaré não somente reconhecia a valorização dada a “cultura letrada” como a problematizava em muitos dos seus versos. E essa valorização à “cultura letrada” também fica evidente na literatura de cordel, escrita e cantada pelos violeiros. Pois quanto mais o cordelista se aproxima da cultura escrita erudita mais ele é valorizado entre os outros cordelistas. E o “desafio” para o repentista pode estar muitas vezes na própria tentativa de diálogo com a “cultura letrada”.
A partir desses questionamentos e, na tentativa de melhor compreender meu objeto de pesquisa: “Por uma poética da linguagem oral na escolarização da literatura infantil”, é que me proponho analisar esse ponto de interseção ente literatura e folclore que é a cultura oral popular. Esta que traz em seu cerne uma “cultura literária” própria, uma cultura de “povo”, que se fazia e se faz pela “oralidade” através das adivinhas, dos adágios, das trocinhas, das parlendas, das ladainhas, da contação ou narração de histórias. O termo literatura “popular” se origina também do conceito de “cultura”, que etimologicamente, provém do latim colere e que serve para designar as duas ações do cultivo: cultivar e colher. Quando pensamos em cultura, cultivar já carrega na criação do ato o produto da própria criação em semente: cultivar e colher o fazer para criar o saber.
A literatura embora nomeada a partir da littera (letra), o que nos remete à escrita, tem seu gérmen na cultura oral, nas primeiras tentativas humanas de registrar através de um código memorialístico de narrativa, de um repetere e religare constantes, a sua existência e a sua consciência temporal e cultural, repleta de significâncias. Walter Ong (1998, 21), em seu livro “Oralidade e cultura escrita”, diz que pensar a tradição oral como “literatura oral” é pensar em cavalos como automóveis sem rodas, é colocar o carro na frente dos bois. Problematizando a afirmativa de Ong, recorro À Canção de Rolando, uma epopéia anônima, que como todas as epopéias, nasce na oralidade (epos), é registrada por uma memória coletiva, para passar depois ao registro da escrita. A Canção de Rolando relata os feitos do Imperador Carlos Magno e seus Doze Pares da França (768-814). Muito lida no nordeste, principalmente nas áreas de sertão, a História do Imperador Carlos Magno retorna à oralidade, através do teatro popular ao estilo vicentino, associando-se à cultura popular nordestina. (Vassalo, 1988) E deste novo movimento de oralidade, a canção “transfigurada” volta à escrita através da literatura de cordel. A canção de Rolando nasce oral e coletiva, passa à escrita e à erudição, e por fim ainda vive seus dias de manifestação folclórica.
Quando se fala em “epopéia” se quer identificar, sobretudo a voz coletiva, que vai acabar suprimida no “romance burguês”. Diferente do herói coletivo das epopéias, a personagem do romance é sempre um “indivíduo” que se constitui numa sociedade que tem como pacto social o individualismo. E retomando ainda a citação de Walter Ong sobre “carros na frente dos bois” , como ainda é possível no Brasil encontrar o chão barrento por onde passavam “carros de boi", é possível ficar mais à vontade, não para colocar o carro à frente dos bois, mas ao lado, ou melhor, indo com os bois. Portanto não acredito que haja qualquer desuso ou contradição no termo “literatura oral” para as primeiras histórias que surgem na oralidade e que permanecem por muito tempo assim – histórias que fizeram e fazem parte de um vasto acervo popular, pois delas trazemos em forma de memória fluída e volumosa o que recebemos do passado de uma coletividade; memória coletiva que, re-significada no presente, persiste através da voz, através de uma herança cultural coletiva, poética e mítica, também pertencida ao folclore, pertencida ao povo que trabalha, se alimenta, canta, brinca, dança e narra seus feitos, suas batalhas, suas tragédias. E é essa narrativa que é ao mesmo tempo é trabalho e “ciranda”, circularidade de fazeres e saberes que nomeamos por “cultura literária oral”. Trata-se então de pensar a literatura em sua ampla expressividade, parafraseando aqui Antônio Cândido, procurando “chegar a uma interpretação estética capaz de assimilar a dimensão social como fator de arte”, numa perspectiva de entender a obra literária “fundindo texto e contexto, numa interpretação, dialeticamente íntegra”( CÂNDIDO, 1985, p.4-7).
E na busca por uma compreensão que problematizasse uma possibilidade de entrecruzamento entre literatura e folclore, bem como suas relações com a língua e a linguagem, que me propus, neste texto introdutório, a uma possível aproximação dialógica com o pensamento do sociológico e educador Florestan Fernandes no que concerne ao estudo do folclore infantil, buscando sempre uma interface com a literatura, principalmente a literatura oral. Havia o interesse de saber a princípio além das convergências encontradas entre as temáticas já citadas, o desejo também de refletir e aprender com Florestan Fernandes sobre uma determinada metodologia de pesquisa, um fazer pesquisa com pequenos grupos sociais, com os grupos infantis, sobretudo.
E dialogando com os escritos de Florestan, a primeira questão sobre a qual me debrucei dizia respeito ao lugar do folclore nas escolas, nas salas de aula e nos textos. Pensando aqui o texto para além do registro, texto em sentido amplo, designando toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano. (FÁVERO & KOCK, 1983, p. 25).
Se nos perguntarmos por qual porta tem entrado o folclore nas escolas brasileiras, poderíamos ousar responder que até hoje, nesse século XXI, certamente ainda não seria pela porta da frente. Talvez entre até pela fresta de uma janela, aqui e acolá nas subversões feitas às normas curriculares. O folclore como tema de relevância cultural e social é tratado ainda de forma insipiente nas reuniões e mesas de debates entre os educadores e na mesma proporção ou desproporção, nas tentativas e possibilidades de problematização dos processos que o fundamentam e dos elementos que o constituem, o folclore que é hoje também parte da cultura contemporânea ou ainda como fruto da cultura de todos os tempos. Como o conhecemos, ou melhor, como o significamos a partir de um mesmo solo já gasto, o folclore seria a manifestação ou expressão das tradições populares, passada de geração em geração. Requentada, reduzida e às vezes pré-conceituosa definição presente nos livros didáticos. E parte dessa representação parece até ter saído da fonte das falas de Emília, quando, por exemplo, a boneca de pano de Monteiro Lobato (1957, p.30) refere-se às Histórias de Tia Nastácia:
Pois cá comigo - disse Emília- só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto!
Sabemos que, por sua especificidade social e cultural constitutiva, a temática do folclore mereceria, sem dúvida, maior atenção e envolvimento dos educadores com um fazer pesquisa na e com a escola que, unindo teoria e prática, desvelasse a multivalência desse tema para a compreensão daquilo que passou a se chamar comumente de “bagagem cultural” do aluno, e no caso específico deste texto, da criança.
Entretanto, mesmo com todo reconhecimento atual do folclore como temática de pesquisa de fundamental importância para compreensão do que é a cultura popular provinda da arte e do trabalho do povo, bastariam poucas incursões em escolas públicas ou mesmo particulares em datas alternadas durante o ano letivo para nos certificarmos de que a concepção de folclore, na maioria das vezes, ainda se restringe ao calendário das efemérides, ora com tratamento ilustrativo ou figurativo, como mais uma data do calendário escolar, ora como tema interdisciplinar, mas ainda visto como “obrigação curricular”, o que se configurou e se estendeu, a partir do discurso “politicamente correto” retirado dos Parâmetros Curriculares Nacionais, onde o folclore aparece inserido no tema transversal “Pluralidade Cultural”. Para exemplificar essas afirmações, citarei parte de uma observação feita numa escola pública da rede estadual do Rio de janeiro durante um “sábado letivo” destinado à comemoração do dia do folclore:

Agosto: “festa do folclore”. Estamos numa escola pública de grande porte. No pátio maior da escola, que fica na parte externa, há muitas barracas formando fileiras organizadas por cores, lembrando uma feira livre. As barracas têm nomes de acordo com as turmas e a seqüência se inicia pelas turmas de 3º e 2º anos com “o folclore no mundo”, perfilando-se em barracas árabes, portuguesas e italianas. Nessas barracas são vendidas rifas, salgados, doces e refrigerante e os alunos improvisam vestimentas que caracterizariam os países homenageados. As turmas de 1º ano fecham a última fileira de barracas, vendendo o que seria a “comida típica brasileira”: cuscuz branco, cachorro-quente, hambúrgueres e outros. São muitas barracas, pois há mais turmas de 1º ano. Não há nenhum painel nem qualquer tipo de artesanato nas barracas do ensino médio. No segundo pátio, que faz parte do prédio da escola, há uma concentração de cartazes nas paredes, neles encontramos o registro de lendas e personagens, como o curupira, o boto cor-de-rosa, o boi-ta-tá, a iara etc. Há também no mesmo pátio mesas com maquetes sobre “os índios brasileiros” – como está escrito no cartaz de entrada. Os trabalhos são das turmas de 5ª a 8ª. No terceiro e menor pátio, também dentro da escola, estão os trabalhos das turmas de 1ª a 4ª. Neste espaço muitas pipas enfeitando as paredes, mesas decoradas com peças de artesanato em papel reciclado, argila e vários outros materiais. Os alunos estão vestidos com roupas que lembram as usadas no maracatu pernambucano. Eles usam chapéus e fitas nas roupas.
No final da tarde houve uma apresentação dos alunos de 1ª a 4ª: o folguedo do bumba-meu-boi foi encenado num pequeno tablado erguido no centro do pátio maior da escola. As professoras disseram ter trabalhado com livros infantis para motivar as crianças que, segundo elas, desconheciam o folguedo e seus significados. Os livros nos ajudaram na hora de explicar o porquê da festa. Eles ficaram mais animados pras brincadeiras e também pra confeccionar os bois durantes as aulas. Disse uma das professoras. Eu gostei foi de fazer o boi e de saber que ele ia morrer pra depois viver de novo, que nem Jesus.A professora foi que disse. Por isso que eu quis me vestir dele (o boi). Mas eu pareço mais é com o boi que eu sou preto. Fala da criança-brincante que vestiu o boi estrela.

Partindo dessa “observação” como exemplo, injusto seria negar certa contribuição do discurso promovido pelos parâmetros curriculares nacionais, mas ainda assim se faz necessário lançar um olhar mais atento e crítico ao “uso” do folclore nas escolas, ou ainda ao seu “mau uso” ou ao seu “não uso disfarçado de uso”. Pois a fragmentação que decorre das práticas discursivas se reflete diretamente nas práticas escolares, essas que muitas vezes não condizem com a própria teoria anunciada nos parâmetros. E torna-se ainda mais grave quando se privilegia uma teoria fragmentada, desvinculada ou mesmo apartada da prática, num arremedo de imperativos prescritos em textos fechados, centralizadores e aplicados de forma verticalizada, como se nesse baixo estivessem os educadores e os educandos.
Dito isto, no que diz respeito ao âmbito escolar e à cultura infantil, poderíamos num olhar aligeirado e um tanto generalista, dimensionar o folclore a um campo inesgotável de manifestações banalizadas e mal traduzidas em quinquilharias feitas de macarrão colorido, fitilho e papel crepom em cartazes pendurados indiscriminadamente nos murais ou corredores das escolas brasileiras ou ainda em apresentações performáticas que ao buscar uma certa verossimilhança com o “folclore antigo” ficam longe, mas muito longe do que seria a “cultura de folk”, a que se reinventa com matizes outras pelas novas práticas culturais. Criam-se assim questionamentos importantes. É preciso tomar distância para expressar o que fala próximo a uma cultura que ainda se faz presente em muitas das brincadeiras infantis? Ou o folclore se diluiu tanto nos elementos culturais, sobretudo nos urbanos, que já não se torna possível o diálogo entre o que é da cultura de massa e o que é da cultura tradicional?
O folclore pode até correr o risco de tornar-se um lugar distante num passado longínquo sem conexão com o presente e o brincar das crianças. Mas se da própria voz infantil surge uma fala como esta: eu pareço mais é com o boi que eu sou preto , podemos compreender que o folclore não está somente na “busca por um tempo perdido”, ele reinventado está nas expressões culturais e nas representações sociais do nosso cotidiano presente. Ainda que nos centros urbanos e embora já se distanciando de seu caráter primitivo, o folclore faz parte das mudanças sociais quando surge resignificado pelas novas manifestações culturais. Florestan Fernandes (1979) nos diz que:

(...) as manifestações folclóricas podem ser sobrevivências de um passado mais ou menos remoto. Nem por isso elas devem ser concebidas como algo universalmente vazio de interesses ou de utilidades para os seres humanos. Reciprocamente, as manifestações folclóricas podem inserir-se entre os elementos mais persistentes e visíveis de certas formas de atuação social.

Dessa maneira, Florestan Fernandes acreditava na possibilidade de se pensar o folclore a partir de sua significância cultural, como parte viva da memória de uma comunidade, de uma cidade, de um país. Essa parte da tradição cultural que, séculos depois, diante da massificação de uma cultura agora civilizada, ainda sobrevive frente às tantas mudanças urbanas. E o que interessa na análise sociológica de Florestan Fernandes é que essa tradição não apenas sobrevive, mas ela também toma parte nessa mudança social. Ela também se transmuta Segundo o sociológo não bastaria ao pesquisador do folclore apenas buscar fósseis de culturas já adormecidas e catalogá-las em coletâneas ou antologias. Mais que isso, precisaria ele estar atento às dinâmicas dos elementos culturais encontrados nos diferentes grupos sociais que vivenciam, reinventando e re-significando o folclore a cada novo contexto.
As décadas de 20 e 30 foram de extrema importância no que concernia ao estudo e inserção de temas folclóricos na literatura brasileira. Muitos foram os que se aproximaram dessa temática, como o escritor de histórias infantis Monteiro Lobato e os modernistas de 22, e entre eles, sem dúvida, com maior ênfase, o literato, musicista e folclorista Mário Andrade. E tanto Monteiro Lobato quanto Mário de Andrade, salvaguardando as diferenças intelectuais, mantiveram intensa correspondência sobre a questão do folclore com o etnógrafo e o folclorista Luís da Câmara Cascudo, um dos grandes defensores do conceito de “literatura oral”.
Podemos lembrar que ainda nos anos trinta tivemos trabalhos de grande expressão na literatura com “os romances políticos contemporâneos” de José Américo de Almeida (A bagaceira – 1928), Rachel de Queiroz (O quinze - 1930), José Lins do Rego (Menino de engenho - 1932), Jorge Amado (Cacau - 1933) e Graciliano Ramos (Caetés - 1933). Cada qual, à sua escrita e maneira, a busca por compor um retrato do povo brasileiro através de suas obras literárias ou personagens literários. Nessas obras podemos também destacar a importância dos aspectos culturais que trazem à tona a formação da sociedade brasileira, do povo brasileiro.
Mas coube à primeira geração modernista maior ênfase no tratamento dos estudos folclóricos, poetas e pintores, incluindo Oswald de Andrade, Tarcila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia e outros, mantiveram por anos a preocupação de uma relação proximal entre cultura erudita e cultura popular. Da arte feita “pelo povo e para o povo”, poderíamos dizer que numa atitude intrínseca antropofágica elementos do folclore nacional foram sendo literalmente apropriados e integrados às obras artísticas de então.
Entre os modernistas vale ressaltar a importância de Mário de Andrade ao propor essa confluência entre o popular e o erudito. O Macunaíma de Mário é tão fortemente constituído por elementos folclóricos, que num dado momento, salta o herói do personagem literário se personificando na imagem carnavalizada e representativa de uma forma de “ser brasileiro” através de um “herói coletivo”, um herói às avessas. Macunaíma vira a ursa Maior. Nesse sentido, sua conduta desconhece os padrões de comportamento habituais – por ser herói mítico, mas principalmente por ser brasileiro e culturalmente híbrido. (FERNANDES, 2003, p.177) Nosso herói que não tem “nenhum caráter” e que desmistifica a identificação pela cultura elitizada dos heróis oficias - para ser num fato lúdico e transgressor Macunaíma na vida. (...) Para Florestan:

Mário de Andrade vai compondo lentamente o seu herói e ao mesmo tempo um compêndio de folclore – Macunaíma é uma introdução ao folclore brasileiro, a mais agradável que se poderia imaginar. Nele pode-se estudar a contribuição folclórica do branco, do negro, do índio, a função modificadora e criadora dos mestiços e dos imigrantes, as lentas, os contos, a paremiologia, as pegas, os acalantos, a escatologia, as práticas mágicas – da magia branca e da magia negra -, todo o folclore brasileiro, enfim, num corte horizontal de mestre. É um mosaico, uma síntese viva e uma biografia humanizada do folclore de nossa terra. (Idem, p.178)

Atuante foi a presença humanizada de Mário de Andrade junto às análises das questões históricas e sociais brasileiras, enfatizando sempre a busca por dialogar com a temática da identidade nacional e da arte popular, arte que habita e hospeda formas de fazer literatura, de fazer cultura, de fazer música, de fazer história etc. Pegando de empréstimo as palavras de Cecília Meirelles (1976, p.90-92):

Foi essa riqueza humana (essa capacidade de compreender e sentir) que fez de Mário um poeta, um músico, um folclorista. Esse desejo de participação, esse entusiasmo de viver não uma, não a sua, mas inúmeras vidas, levaram-no até esse desdobramento do Macunaíma, tão misturadas ao Bem e ao Mal, tão entregue à experiência terrena e sem fim: ”Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta....” Basta ler os seus livros para se sentir o gosto com que ele os escrevia: gosto bem diferente do de um simples escritor; gosto do homem interessado pelo que viveu, ou sentiu em redor de si, e desejou fixar com palavras. (...) Na sua coleta de folclore, não é apenas um especialista que vemos prestar ouvido à melodia, captar a cantiga de texto ingênuo: é Mário mergulhando na música, impregnando-se de música, transformando-se em música e transmitindo-se com aquela voz, prisioneiro daquele encantamento de caçador deslumbrado que, por um momento esquecido de seu ofício, põe-se a correr também ao ritmo das vidas que palpitam na floresta, e ele mesmo é toda a floresta.

E é pela capacidade humana de pensar e sentir que a arte, a ciência, a cultura, a política, a linguagem, a literatura – todo o conhecimento “controlado” e restrito a esfera da dominação, deveria estar “de fato” e não “de fala” ao alcance de todos. Pois os “grupos subalternos” podem transformar o que chamam de realidade através da prática e da reflexão de um conhecimento comunitário. E são esses saberes democratizados que provêm de uma determinada concepção de mundo que podem tirá-los do isolamento, podem mobilizá-los, uni-los e confortá-los nas angústias frente às incertezas e algures do mundo. Não seria, neste caso, a linguagem entrecruzada por outros tantos conhecimentos, como os da literatura e do folclore, fundamental via de acesso à produção do conhecimento crítico?
Creio que tanto Mário de Andrade quanto Florestan Fernandes buscaram compreender a arte folclórica como um elemento efetivo nos processos de mudança social na cidade de São Paulo e no Brasil. E isso aparece tanto nas análises sociológicas propostas por Florestan quanto nas contribuições não apenas literárias, mas de caráter curioso, investigativo desenvolvido por Mário de Andrade em vários de seus estudos sobre a arte folclórica. E se pensarmos em paixão pelo saber e fazer, o folclore certamente esteve para Mario de Andrade assim como a sociologia esteve para Florestan Fernandes: “quase amor” .

Cultura da infância: compreendendo o folclore infantil em Florestan Fernandes

Afirmo que iniciei a minha aprendizagem sociológica
aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um
adulto e penetrei, pelas vias da experiência concreta, no
conhecimento do que é a convivência humana e a sociedade.

(...)para um recém egresso dos quadros mentais da cultura de folk, aquela pesquisa era fascinante. Eu lancei-me a ela com um alvoroço de um primeiro amor.
Florestan Fernandes

Florestan Fernandes nasce em São Paulo a 22 de julho de 1920. De origem humilde, filho de uma costureira do Brás, conheceu o mundo do trabalho ainda muito cedo, aos seis anos de idade. E como ele próprio afirma, se deu na infância o seu primeiro contato com a dura realidade concreta “do que é a convivência humana e a sociedade”, esta realidade marcada pela injustiça social e pela desigualdade entre os homens.
A infância, que certamente pode ser um “viveiro de prazeres”, como diz uma crônica de Luís Fernando Veríssimo, pode ser e ter juntamente com os prazeres um “viveiro de desprezares”, principalmente se pensarmos na contingência da miserabilidade espalhada por todo esse extenso território brasileiro de crianças e infâncias largadas à própria sorte ou à falta de. Afinal, para aqueles que descendem das classes mais baixas a infância será já pré-moldada com a expectativa de inúmeras superações. Comparadas às piores cenas dantescas, podem se tornar filhos de uma espécie de mundo que os lança à invisibilidade e ao acaso das calçadas, das ruas, vielas e barracos. Numa orfandade de cidadania, ou de políticas, logo de início precisarão sobreviver e resistir à força bruta da opressão, neste caso: a própria vida severina, já que não se tem outra de pia. E mesmo superando todas as primeiras etapas de sobrevivência, difícil ou negado poderá ser o caminho que os levará à educação formal, caminho fortemente marcado pelo desafio material e pela desconfiança quase sempre punitiva daqueles que insistirão considerá-los à margem. Isso sem contar as intempéries e todos os déficits de formação, decorrentes da distância abissal entre as camadas mais pobres e as mais privilegiadas deste país.
Mas ainda assim, não podemos, numa visão reducionista, deixar de considerar a capacidade de subversão do que pode parecer “destino definitivo”, afinal seria limitar toda infância pobre a um rosário de dramas ininterruptos. O que também não se pode negar é que mesmo vivida com mais “desprazeres” que prazeres, mora na infância a primeira possibilidade de transgressão de lugar, de superação e não aceitação do factum.
Tampouco podemos desconsiderar que a experiência concreta de uma dura realidade social vivida desde a infância não se torne ela própria também responsável por uma visão de mundo mais à derme dessa realidade, e conseqüentemente, mais sensível a essa realidade. Foi o que Florestan Fernandes viveu – o pensamento sobre a sociedade brasileira, a princípio, à derme e à flor da sua infância; depois, à flor de sua trajetória e experiência.
A trajetória humana e acadêmica do sociólogo Florestan Fernandes nos instiga a um “querer saber” que é ao mesmo dinâmico e potencializador, “querer saber” que precisa se fazer ação criativa, poiesis e transformação na luta contra as artimanhas de um tipo de discurso estéril que esvazia de sentido qualquer possibilidade de reflexão. Discurso que se dissemina, internalizado por muitos que deixam de acreditar numa educação com esperança e para as mudanças.
O pensamento crítico e a ação mobilizadora são, de fato, possibilidades significativas e efetivas de intervenção na realidade social. E que é necessário que o discurso da mudança parta do pensamento da mudança aliado ao desejo da mudança e à ação da mudança. Mas como nos ensina Paulo Freire, não se faz isso sem assumir riscos, sem que nos arrisquemos, até mesmo perdendo parte daquela falsa segurança, daquele conhecido conformismo que nos protege da aventura.
Por isso torna-se mesmo inegável a contribuição de Florestan Fernandes aos campos da Sociologia e da Educação no Brasil. E creio ser significativo notar que, mesmo mantendo a sociologia como base de sua fundamentação e sustentação teórica, o que se refletiu em toda sua contribuição acadêmica, Florestan Fernandes não se limitou a uma monocultura temática, não se restringiu a único campo do conhecimento sociológico, o que, aliás, pode ser visto como qualidade inerente a sua notável inquietude e capacidade intelectual. E nesse contexto e a partir de experiências diversas, datam de 1941 a 1962, uma série de textos sobre o estudo sociológico do folclore, textos que foram reunidos e posteriormente publicados nos livros “Folclore e mudança social na cidade de São Paulo” (1979, 1ed.) e “O folclore em questão” (1977, 1ed.). Esses estudos fizeram parte principalmente de um período de formação em que o sociólogo paulistano ainda iniciava suas primeiras pesquisas nas ciências sociais, passando nesse ínterim, de aluno de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1941, a segundo assistente na cadeira de sociologia II na Universidade de São Paulo, em 1945.
Nesse primeiro período de estudo, Florestan Fernandes desenvolveu um intenso trabalho de pesquisa na cidade de São Paulo. E dessa fase vale ressaltar a importante contribuição empírica de um estudo sobre “a arte popular”, principalmente no que diz respeito à criação de uma análise crítica que, debruçada sobre uma sociologia do folclore, se amplia e se potencializa no chamamento para uma teorização de caráter investigativo, esta centrada numa perspectiva prático-metodológica, ressaltando por sua vez “o folclore” como relevante campo de conhecimento e pesquisa sociológica. Nota-se, desde então, a objetividade e o rigor que Florestan Fernandes buscava empregar nesse fazer metodológico. Pois considerava que numa ciência “imatura” como a sociologia era de grande importância, “a reflexão metodológica”, posto ser necessário defendê-la de desvios provindos de outros campos. (FERNANDES, 1976, p.57)
É com Florestan Fernandes que nasce então uma forma de reflexão metodológica que resulta num “fazer sociológico”, este que ao legitimar a pesquisa é também legitimado por ela. Movimento que se amplia e se modifica nas décadas seguintes e que pode ser compreendido como umas das singularidades de um intelectual que buscou respeitar, sobretudo as suas próprias mudanças com seus movimentos internos.
A década de 1940 ou o primeiro momento de estudo e formação de Florestan Fernandes pode ser descrito pela “construção do saber”, mas penso que também pode imprimir à década “a construção de um fazer: fazer sociologia”, construção que nas pesquisas e textos do sociólogo se evidencia num singular intercruzamento metodológico: de um lado uma incontestável experiência empírica e do outro, um enriquecedor universo de referências culturais da sociedade brasileira. Essa malha teórica-prática vai se refletir no olhar ao mesmo tempo crítico e sensível do pesquisador para questões nodais da realidade social.
Nesse momento de formação, Florestan Fernandes buscou trabalhar com pequenos grupos e comunidades. E sobre essa escolha mais tarde vai confirmar

(...)ser o melhor expediente para levar o aluno a refletir sociologicamente e aprender o respeito pelos dados de fato, a compreender e praticar a objetividade, a descobrir a utilidade dos conceitos e teorias sociológicas, a perceber o valor das hipóteses e dos critérios pelos quais elas podem ser submetidas à prova, a adquirir habilidades na identificação, classificação e tratamento analítico das evidências relevantes para a descrição e interpretação dos fenômenos considerados, a capacitar-se para lidar com a totalidade e a construir tipos etc. , (FERNANDES, 1976, p.70-71)

Partindo desse referencial metodológico e trabalhando com comunidades paulistanas, Florestan Fernandes enfoca e investiga o folclore como parte significativa de formação cultural e também como elemento de mudança social. Dessa fase, talvez o texto mais exemplificativo seja mesmo “As Trocinhas do Bom Retiro” (1979) , texto da fase inicial de formação universitária de Florestan Fernandes. Para Florestan (1979, p.161), esse pequeno trabalho representou uma passagem da iniciação didática para a iniciação científica, e nas suas palavras, ele lhe devia, em termos de aprendizagem, muito mais do que ficara devendo aos cursos freqüentados anteriormente.
Como bem disse Roger Bastide, no prefácio que faz a este significativo texto, “não se pode compreender a cultura, separando-a do grupo social que ela exprime”. (1979, p.134) Para Bastide, o folclore não era uma simples curiosidade ou um trabalho de erudição, mas sim ciência do homem, e sendo ciência do homem não poderia portanto esquecer o homem e no caso da pesquisa com grupos infantis, não poderia esquecer “a criança que brinca”. (Idem, p. 154)
Na pesquisa com os grupos infantis, Florestan Fernandes elabora uma metodologia de observação que não se esgota numa única “realidade vista”, mas que se amplia quando na aproximação dessa realidade, abre um campo de distanciamento com o equilíbrio de quem tem o olhar do pesquisador e a lente da pesquisa. Despindo-se do excesso de expectativas lançadas a priori, desvela, de fato, o universo das brincadeiras infantis a partir do universo brincante das crianças, sem carregá-lo assim também de respostas prévias. Como pesquisador da cultura infantil era importante para ele que ao observar as brincadeiras das crianças, fossem levadas em conta as características próprias do mundo infantil. Pois afirmava existir uma cultura infantil constituída por elementos culturais quase que exclusivamente das crianças. Esses caracterizados por uma natureza lúdica seriam elementos folclóricos, passados aos grupos infantis muito remotamente. (Idem, p.171) Segundo ele, quase toda totalidade desses elementos provinham da cultura do adulto numa espécie mais de incorporação que de mimetismo, o que acabava por se constituir num processo de aceitação e continuidade no tempo. Mas Florestan ressaltou também que era possível encontrar “outros elementos” na cultura do grupo infantil, elementos provenientes da criação de um patrimônio cultural próprio.
Partindo dessa leitura de Florestan Fernandes, consigo acreditar ainda mais que as crianças tragam e guardem em si mesmas a herança de um velho mundo, um mistério lúdico qualquer que, ao ultrapassar a possibilidade do registro adulto, renasça somente nelas, feito semente do que houve de passado. Cada criança seria então “um patrimônio histórico e cultural da humanidade”, precisando dessa forma cada uma receber o zelo necessário para com o seu presente e futuro.
Para Florestan era a partir da junção dos elementos culturais, os aceitos da cultura do adulto e também os elementos elaborados pela própria cultura infantil, que as crianças, na interação com os aspectos culturais do adulto acrescentariam a essa interação, pensada aqui também como simulação do real, uma dinâmica muito singular, numa lógica pertencente apenas ao universo referencial do grupo infantil, que nas brincadeiras socializa brinquedos e experiências. Então haveria sempre algo de novo nas brincadeiras infantis. Aquilo que se repete continuamente, mas de forma sempre diferente. Florestan diz que, os folguedos, por exemplo, não seriam apenas a imitação do adulto por parte da criança, pois a criança não estaria copiando quem quer que seja em seus folguedos, mesmo porque estes pertenceriam ao patrimônio cultural do grupo e já estariam suficientemente despersonalizados, pela duração no tempo e pelas transmissões sucessivas. (FERNANDES, 1979, p.175)
Exemplo dado pelo pesquisador para confirmar a apropriação dos elementos da cultura do adulto, esta modificada pelos elementos referenciais da cultura infantil, poderia ser encontrada nos folguedos “Papai e Mamãe” no qual

(...) a criança não imita o pai ou a mãe, mas executa as funções que lhes são atribuídas por sua posição e pelos seus papéis sociais, segundo a padronização da cultura ambiente. (Idem, Ibidem.)

Essa socialização da infância se dava num processo de educação informal dentro dos próprios grupos infantis nas interações cotidianas. Tratava-se então de uma educação das crianças, entre as crianças e pelas crianças”.(Idem, 176) Assim o pesquisador e sociólogo Florestan Fernandes nos ajuda a pensar que a criança é um sujeito de memória, criatividade e intuição, um ser cognoscente, capaz de interpretar e compreender o mundo a partir de elementos elaborados por ela própria, brincando e reinventando interações e linguagens. É um sujeito criativo que traz nas suas brincadeiras cotidianas elementos do mundo adulto, resignificando-os a partir de uma cultura infantil. Por isso se faz necessário valorizar a criança como sujeito criador de uma aprendizagem própria, capaz de discutir e construir novos “sentidos e significados” na sua constante relação com o mundo e com os outros.
Quanto ao folclore infantil, Florestan chama a atenção para o fato desse ter sido pouco estudado, não sendo o processo de transmissão dos elementos da cultura infantil sequer analisado até aquele momento, década de 40, mesmo pelos mais dedicados estudiosos dos fatos lúdicos. Pois para Florestan, os fatos referentes ao folclore infantil consistiam, sobretudo nos “fatos lúdicos”, caracterizando-se por isso duplamente: sendo recreativos e geralmente se restringindo ao círculo das crianças. (Idem, 190)
Como podemos notar, a pesquisa de Florestan Fernandes foi precursora em vários aspectos hoje amplamente difundidos e pesquisados sobre a infância, assim como o lúdico, as brincadeiras, o brinquedo. É esse princípio de reconhecimento de uma socialização da infância pela cultura infantil que também veio fortalecer as pesquisas que envolviam e hoje envolvem muitos processos e práticas educacionais relativas à infância, bem como veio também corroborar para com o respeito ampliado a essas questões e isso se deu pelo surgimento de novos olhares para as tantas peculiaridades do universo cultural infantil. Pois a criança é um sujeito de cultura inserido num contexto social assim como o adulto também o é. O encontro desses sujeitos no espaço físico e temporal da escola faz do lúdico, da brincadeira, do jogo, da linguagem e da cultura infantil, possibilidades de acesso a uma educação democrática e emancipatória.

O discurso oral como processo de significação e a relação entre folclore e literatura na escola - Cala boca já morreu...

Meu boi urrou, abalou os vagabundos,
Cururuca não agüenta
as Mercês já foi ao fundo
derribou uns bangalôs
que abalou o meio mundo.
No mês de maio, quando amanhece
a sereia canta e a onda do mar sobe desce.
No mês de junho, quando anoitece,
eu reúno a minha gente e o povo de longe já conhece.

(Toada maranhense)


Todo ano, no mês de junho, nas toadas de um folguedo de bumba-meu-boi como os dos bois brincados em São Luís do Maranhão, a conhecida e lenda de Pai José e Catirina é renovada continuamente pelo cantar e pelo contar. E cada versão dessa história traz em si novos elementos agregados pela inclusão de outras lendas, personagens míticos e históricos, como Dom Sebastião e Ana Jansen, ou ainda personagens locais: repentistas, compositores, cantadores, artesãos, poetas populares etc. E ainda que o bumba-meu-boi seja também brincado em outras regiões do país, como no Pará e na Amazônia, as crianças dos outros estados, como os do sul ou sudeste, certamente, não terão contato mais próximo com esse folguedo, a não ser pelas informações superficiais veiculadas na mídia ou ainda pelos textos explicativos dos livros didáticos. Dessa maneira, dado o distanciamento espacial e temporal, a literatura infantil torna-se hoje importante instrumento pedagógico de acesso a essa e outras artes populares, justamente por buscar levar em conta a linguagem e a cultura infantil, até mesmo porque há uma preocupação dos autores dessa literatura, principalmente os contemporâneos, com o universo de referências das crianças, buscando não estereotipar a arte popular. Não podemos generalizar ou até mesmo encontrar um consenso entre os críticos, mas é possível encontrar autores infantis e ilustradores que tentam imprimir em seus textos e ilustrações as sutilezas e as delicadezas de uma magia que habitava as narrativas antes apenas orais.
Quando pensamos na escolarização da literatura, devemos lembrar, que durante séculos a literatura foi apenas narrativa oral e a própria arte popular que provinha do discurso oral, como as trovas, as quadrinhas, as cantigas de roda, as adivinhações, todo esse folclore como o concebemos hoje teve também como base constitutiva a contação de histórias, causos, lendas. Assim, literatura oral e folclore foram sendo “transmitidos” e preservados pela repetição narrativa dos feitos e saberes dos povos considerados agrafos. Difícil dizer onde começa e termina o que é da literatura oral e o que é do folclore, dada as tantas similitudes desse berço inicial. Isso nos faz pensar na importante tarefa da ação narrativa dos primeiros grupos sociais. Pois era através da contação e permuta de suas experiências, atravessadas por trocas lingüísticas e extra-linguisticas que se fazia a preservação da cultura oral, podendo ela depois ser registrada como parte da literatura ou do folclore ou ainda de ambos, se pensarmos no que de fato pertence ao campo da semiologia. Afinal era pela semiologia que se dava a força imagética do uso da linguagem que fornecia aos homens de então subsídios semióticos potenciais necessários à criação do que viria a ser escrito ou registro posterior. Segundo Walter Benjamin (1987, 205), sobre a comunidade dos ouvintes: “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história”. Benjamin nos instiga a pensar na troca de experiências que havia no ato de lembrar e narrar dos povos antigos, povos que sabiam bem o que era contar, caçar e “colher” – essas palavras que pertencendo ao mesmo campo semântico da palavra ler, nos levam ao campo semântico das palavras fiar e tecer e nos desvelam do oral a escrita ou do tecido oral o registro do texto.
E assim como o folclore foi e é uma arte do povo para o povo e pelo povo, a literatura oral também o foi e é. E essas artes dialogadas criaram e criam, ainda que com tramas distintas, uma conjugação única entre oralidade e memória. Isso se comprova na persistência das narrativas que residem e ainda resistem ao esquecimento e à morte. Na cultura oral mexicana, se diz que uma pessoa morre três vezes: quando morre fisicamente, quando sepultam seu corpo e quando falam seu nome pela última vez. Porque carecendo “ser” precisamos nos falar e falar e ouvir também nossos nomes, e assim carecemos também nos contar e contar das nossas histórias, forma primeira de preservação de uma dada inscrição de existência humana.
Mas não é somente através da transposição do discurso oral para o discurso escrito, que conseguimos chegar à estrutura da língua, isso se faz também quando sempre, de alguma maneira, refletimos sobre a finalidade dos textos orais e escritos, suas variações e combinações, seus contextos lingüísticos. Segundo Bakhtin “a língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes”.(1986, p.147) A língua está em constante mutação. Por isso ainda não conseguiram trancafiá-la na silabação e palavração sem sentido que insiste dizer que o índio (brasileiro) tem dente de elefante e que o coelho come repolho. A língua não como um ser acabado (ergon), mas como um devir permanente, viva (energeia), dinâmica e ideológica. Não se trata de um meio ou de um instrumento que serve para atingir fins exteriores a ele, mas de um organismo vivo, funcionando em si para si. (Bakhtin, 1986, 183).
A língua é nossa terra, é gaya, mas também é água, correnteza fluida que nasce continuamente da nossa potência criativa através da cultura oral. O uso da língua nos fortalece, por isso sem o reconhecimento do que falamos e do que produzimos enquanto falantes, estaremos fadados à falta de território, pois sem uma identidade lingüística valorada, sendo ela singular e coletiva, podemos nos tornar passivos diante dos perversos processos de exclusão. Órfãos da nossa própria língua, submetidos às estruturas hegemônicas previamente estabelecidas nos tornamos alvos fáceis de discursos que fatalmente nos farão esquecer também a nossa própria história e a nossa própria natureza humana. E citando Drummond, logo também esqueceremos a língua em que comíamos, em que pedíamos para ir lá fora, em que levávamos e dávamos pontapés, a língua, breve, entrecortada.
Segundo a mitologia greco-romana o homem nasceria da terra e de suas águas aquecidas pelo sol. Dessa forma, toda sua natureza humana tornar-se-ia então co-participe dos elementos que, imbricados, constituiriam sua herança mítica. E quando chegada fosse a hora da morte desse homem, a mãe terra ao reconhecê-lo de volta guardar-lhe-ia devotamente em seu seio. Por isso, nessa mitologia, quando se desconhecia a origem de um homem ou até mesmo de um povo, a ele era dado o registro de “filho da terra”. A esse exemplo de “fundação” na mitologia greco-romana, poderemos agregar outros tantos de outras mitologias. “O mito é o nada que é tudo”, disse Fernando Pessoa. Nós, humanos, criamos do nada os mitos e não apenas como método interpretativo para o que achávamos sem explicação. Mas os mitos surgem como uma espécie muita distinta de baluarte do conhecimento e da criação humana. Não teríamos chegado a qualquer conhecimento posteriormente sistematizado se antes, na sua forma “germinante”, não surgisse ele próprio do mesmo material inventivo e simbólico que também fomentava a criação de mitos em tempos arcaicos: a curiosidade, a intuição e o nada que é tudo. Afinal, não nasce o pensamento cientifico do mesmo princípio de ousadia investigativa com as quais os homens primitivos buscavam responder as primeiras perguntas de busca por uma experiência fundadora: De onde viemos? Pra onde vamos? Qual é a nossa origem? O surgimento do mundo das respostas não afastou o homem do desejo instintivo do mundo das perguntas e das descobertas. Assim como a escrita não levou por terra o potencial imagético e simbólico da oralidade.
A mitologia surgiu inicialmente pela tradição oral e permaneceu nela até que surgisse o primeiro escriba. Com o advento da escrita, esse campo do conhecimento deixa de ter o caráter único de guardião das histórias orais, sendo “elevado” ao patamar de literatura universal. Primeiramente, protegida auspiciosamente pelos monges em soturnas bibliotecas da idade média, tornava-se enquanto literatura, privilégio de poucos. E se a humanidade caminhou a passos rápidos para os tempos modernos, o que dizer da literatura antes oral e compartilhada nos passeios públicos entre toda gente, ficando detida a partir de então aos domínios bem delimitados e fronteiriços de uma classe elitista e privilegiada, tornando-se quase uma prisioneira das ilhas civilizatórias da escrita. Isso sem dúvida se evidencia com o surgimento dos primeiros romances. A literatura oral, assim como as prosas e as trocas comunitárias vão perdendo as ruas, as praças, os centros públicos das cidades. E por sua vez os homens vão silenciando o que é arte no discurso oral.
Numa fase anterior ao romance e até mesmo à escrita era o repetere de uma estória a sua única fonte de registro e há de se dizer que um registro sempre inédito, pois afinal a fala guardava em si um ímpeto de movimento inaugural que, quando não interditada, seguia uma fluidez enriquecedora. Daí o folclore e a literatura andarem confundidos no que concernia à cultura oral, como bem evidenciou Florestan Fernandes numa de suas crônicas para o Folha da Manhã em 1945:
O folclorista foi dos últimos a tratar dos fatos folclóricos - lendas, tradições, mitos, superstições, crendices, técnicas de cozimento do barro, de modelação, formas de cultivo da terra, estilos típicos de vida etc. - e quando êle surgia no Século XIX tinha diante de si um trabalho de notação tão grande, que poderia iniciar o estudo do folclore indiretamente, nas grandes obras, começando na antiguidade clássica no teatro grego e em Homero, passando por Vergílio e Petrônio, até chegar a Gil Vicente, Cervantes, Mistral... O folclore confundia-se na literatura, embora não houvesse preocupação alguma em se fazer arte popular. É, aliás, uma sobrevivência dessa fase muito extensa a idéia de que o folclore constitui uma parte da literatura.
Pois eram principalmente aos narradores primitivos e anônimos que se conferiam o importante papel social de zelar pela cultura oral comunitária, de não deixar morrer a história de um grupo, uma família, de um povo. Como griôs caçavam histórias e cantigas – presas da criação humana. Portanto, o mundo simbólico e semiológico da oralidade fazia parte da aprendizagem de mundo para esses povos sem grafia, mas não sem simbologia ou semiologia. Esse processo de fruição entre oralidade e escrita foi vivido na cantiga trovadoresca, a poesia da era medieval feita para ser cantada por um trovador, ao som da lira. Lirismo compartilhado entre voz e música, cantiga e literatura.
Vimos assim que a literatura tem na voz o seu primeiro meio de expressão e na escrita, tem por sua vez, enquanto registro, a garantia da permanência das sucessivas fases de uma tekné, de um artesanato textual contínuo que se perpetua através dos séculos laboriosamente renovado a cada leitura, a cada leitor.
Assim é que o suporte físico do papel tem contribuído para a “permanência da voz”. Mas por outro lado, nem a representação escrita nem a icônica conseguem apreender por completo todos os recursos que do texto oral, bem como as suas sucessivas modulações. Quando usamos a nossa voz todo nosso corpo se movimenta e se expressa através dos nossos gestos, das nossas entonações, dos acentos peculiares, da forma como nos posicionamos em relação ao outro, falando e ouvindo.
A oralidade renova-se continuamente, podendo dar de empréstimo ao texto escrito, novas cores, novas perspectivas, abrindo novos caminhos aos narradores. E isso se dá nas manifestações da arte popular: nos folguedos, nas marujadas, nas pajelanças, nas ladainhas, toda uma cultura oral nascida na coletividade. E essa expressão polifônica torna esse texto coletivo oral semanticamente denso e quanto à forma, representativo de uma diversidade fluída e multifacetada que se revela por meio das marcas dos seus produtores – os falantes, os artistas, os brincantes.
Minha voz, minha vida, meu segredo e minha revelação, minha luz escondida, minha bússola e minha desorientação... Percebemos que a voz transmite muito mais que vocábulos, ela exprime nossos sentimentos e sentidos, nos caracterizando como sujeitos. É através da voz que conhecemos o estado em que se encontra quem fala. Nela inserimos nossos desejos, emoções, crenças e desejos. E é também através da voz ou da sua falta que nos horrorizamos diante das injustiças.
Paulo Freire (1987), nos ensina que:

Existir, humanamente é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novos pronunciar. (p.78, grifo meu)

Na escolarização da literatura infantil , ouvir e contar estórias é um importante passo para a descoberta da leitura com gosto e da escrita com gosto. Pois quando narramos uma história para as crianças permitimos a elas e a nós mesmos a oportunidade da observação, da pesquisa com os sons e as letras, o que se dá no contato com a palavra falada e ouvida, que difere da palavra lida e da palavra escrita. E ao lermos em voz alta, também mostramos às crianças que há diferenças entre o som da “fala” (fonema) e o som da “escrita” (grafema), entre os sons das letras. A criança passa a refletir sobre a língua e sobre sua diversidade.
A audição de histórias descortina o trinômio: “oralidade, leitura e escrita”, desvelando o mundo “da linguagem verbal e não verbal, do processo interlocutivo no qual se instaura a construção de sentidos” (Geraldi, 1993, 10). As crianças começam a perceber que existem muitas possibilidades para os textos, aumentando assim seu repertório de “palavras-mundo”. Aprendem que a voz também existe para levar leituras, histórias, dramatizações e emoções aos ouvintes e desse feito, aprendem e ensinam as palavras geradas e geradoras.
Nos sentimos mais próximos quando há uma voz por perto, ativamos nossa fantasia, nosso imaginário. Pois existe e persiste no eco de nossas vozes o espírito dos avós, bisavós, dos professores, dos contadores de histórias, dos poetas, dos compositores, dos artistas populares. Inúmeras vozes que ao emudecerem falam e renascem através de nós.
Na educação das crianças, como também nos ensinou o mestre Paulo Freire, a leitura de mundo precede a leitura da escrita. Pois ao chegar à escola em fase pré-escolar, a criança ainda pode ser instigada a exercer sua cultura, sua linguagem, seja através de brincadeiras, jogos lúdicos, relatos do seu cotidiano. São muitas as brincadeiras folclóricas, as “rodas”, os teatros de marionetes, as contações de histórias, as cantigas, as trovas, os versinhos, tudo isso num exercício contínuo de cognição e linguagem da fala e do corpo. Mas a continuidade dessas práticas escolares que trazem a brincadeira e a oralidade como práticas centrais de aprendizagem, ou até mesmo circundantes, continuam a perder espaço no cotidiano escolar quando pensamos na fase posterior – já no 1º ano ou alfabetização, o que se agrava ainda mais nos anos subseqüentes do ensino fundamental. Como se a oralidade, a brincadeira e o folclore fossem perdendo o “valor educativo” para dar lugar ao “sério”. Para Florestan Fernandes (2003, p.65):

Sem dúvida, há diversão atrás das atividades folclóricas: mas há também uma mentalidade que se mantém, que se revigora e que orienta o comportamento ou as atitudes do homem. A criança ou o adulto, por seu intermédio, não só participam de um sistema de idéias, sentimentos e valores. Pensam e agem em função dele, quando as circunstâncias o exigem.

Ainda assim, privilegia-se a prática da escrita e dos “deveres” em detrimento das práticas folclóricas que envolvam o lúdico e a oralidade, sem que se leve mais em conta o fato da criança também construir aprendizagem a partir da sua própria cultura, da sua “fala”, da sua “pesquisa” de mundo, amalgamando realidade e imaginação. É a partir do lúdico, da linguagem, da “fala” que é voz e corpo que a criança conhece e experimenta as descobertas do mundo, manipulando um universo de hipóteses, desvendando “o velho no novo”. O professor não é o ponto final do desenvolvimento que os estudantes devem alcançar. Os estudantes não são uma frota de barcos tentando alcançar o professor, que já terminou e os espera na praia. O professor também é um dos barcos da frota. (1987, p.66.)
Sabemos que diferentes tipos de saberes convivem sob o mesmo teto do ambiente escolar, mas ainda assim é o modelo “escrito-escolarizado” que prevalece como único a ser seguido de forma normativa. Contar histórias parece ser uma perda tempo, retrocesso saudosista ou ainda conhecimento atrelado a um passado de colônia com suas práticas de dominação. E Monteiro Lobato (1957, p. 3) vai “fazendo escola” com as Histórias de tia Nastácia e Dona Benta:

- As negras velhas - disse Pedrinho - são sempre muito sabidas. Mamãe conta de uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma de nome Esméria, que foi uma escrava de meu avô. Todas as noites ela sentava-se na varanda e desfiava histórias e mais histórias.

A linguagem que provém do povo nas histórias folclóricas - a linguagem que é fazimentos; que resiste viva ao silenciamento normativo da linguagem legitimada por um grupo seleto de donos do saber é a linguagem que emerge para nos fazer refletir sobre o contexto ideológico que limita e separa as modalidades dos discursos. Pois linguagem é conhecimento coletivo e assim deverá ser para que se mantenha livre, para que liberte e humanize pela oralidade e pela oratória, ou seja, nos seus mais diversos usos e contextos. Objetivo impossível de ser alcançado sem o exercício da compreensão dialógica entre os homens.
Essa oralidade que pertence a todos os falantes pode ser compartilhada como conhecimento a partir dos mais distintos contextos lingüísticos. Pois as palavras faladas se tornam imagens e as imagens retornam ao texto oral, acompanhadas de perto por nosso olhar atento, pousado ou na escritura do lido ou absorvida pela escuta atenta de quem ouve uma história. E, se por acaso, nos distraímos na leitura do texto escrito ou na audição do texto falado, o encanto meio que se quebra e então perdemos parte da magia. Neste caso, o silêncio de quem ouve é tão importante quanto a voz de quem fala. Saber ouvir é então saber participar da fala do outro, respeitando o encantamento de cada lugar. E são os dois juntos, falante e ouvinte, que perfazem a leitura e a escuta dialogadas.
Ainda sobre a cultura oral, há ainda uma passagem muito bonita num texto de Pierre Lévy (1993, 84): “Os três tempos do espírito: a oralidade primária, a escrita e a informática” em que ele fala da persistência da oralidade nas sociedades modernas:

Finalmente, a literatura, pela qual a oralidade primária desapareceu, hoje tem talvez como vocação paradoxal a de reencontrar a força ativa e a magia da palavra, essa eficiência que ela possuía quando as palavras ainda não eram pequenas etiquetas vazias sobre as coisas ou idéias, mas sim poderes ligados à tal presença, tal sopro... A literatura, tarefa de restituição da linguagem para além de seus usos prosaicos, trabalho da voz sob o texto, origem da palavra, de um grandioso falar desaparecido e, no entanto sempre presente quando os verbos surgem, brilham repentinamente como acontecimentos do mundo, emitidos por alguma potência imemorial e anônima.

Gostaria de incluir nesta passagem de Lévy além dos verbos, os personagens: os contadores de causos, de histórias – personificações da oralidade dentro da literatura, sobretudo na literatura infantil. Seguindo de perto os dizeres de Lévy e entrecruzando-os às palavras de Florestan Fernandes nesse desafio que é pensar as relações entre a literatura e o folclore nas práticas textuais, é que me propus compreender o tempo ido da tradição oral e o tempo volumoso das cheganças da cultura infantil, tempo atravessado por uma memória coletiva e mítica, tempo atravessado pela mudança que é também um construído cultural feito em palavras, pois a palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (Bakhtin, 86, 37).
O tempo urge e se faz ainda mais necessário desejar que a linguagem oral e o folclore entrem, enfim, pela porta da frente da escola, seja por via do cênico, do cômico, do trágico, do fantástico ou do lúdico. E fica também expresso o desejo de ver banido das práticas escolares o uso da escolarização “sem a experiência dos sentidos” e o desejo de não ver mais a leitura de textos literários apenas como “dever obrigatório”, principalmente a leitura dos poemas e dos textos infantis, lidos a fim das argüições que castram e reduzem o texto à uma orquestração de sons a favor da guilhotina da palavra nossa de cada dia, palavra que só nos pede a entrega. Mas não há entrega ou escolha sem riscos. Por isso as crianças se lançam a descobrir a novidade do mundo arriscando-se: cutucando, virando de ponta à cabeça, olhando pelo avesso, tirando as camadas, tirando de esquadro, subvertendo a lógica do pré-estabelecido para reinventar o dito e o pensado do mundo com arte.


BIBLIOGRAFIA

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Internet
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_______. O Romance Social no Brasil, publicado na Folha da Manhã, quinta, 27 de abril de 1944.
_______. Romance Político Contemporâneo, publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 27 de julho de 1994.




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É intensa e infinita a infância, rua de onde não se sai de todo.  Nublagem feito sombra que entranha, quase víscera.  Da infância ninguém se recupera  totalmente.  (Começa em Mar, p 132) Não costumo chamar de resenha o que se faz de forma tão intimista e confessional. Acredito que seria melhor chamar de leitura ou carta, uma carta que envio para a escritora de um certo além-mar, autora de um dedilhar poético que comunga exílios com memórias de sal, as que nos noticiam da nossa própria formação identitária. Na minha leitura que começa antes do livro, o Mar, ou melhor, a Mar começou por um encontro entre Porto e Mar-anha. Porque o Porto se encontra é no Mar. E o primeiro contato com Vanessa Maranha se deu através do Mar, das águas e da ilha. Eu tinha feito um comentário no grupo do "Mulherio das Letras" - sobre a nossa líquida forma de existência e insistência em ser mulher, de como nós nos fazíamos de líquidos, liquefeitas das águas que marcavam nossos ciclos

Projeto Político Pedagógico: Escola da Ponte, Porto, Portugal.

Projeto A Escola Básica da Ponte situa-se em S. Tomé de Negrelos, concelho de Santo Tirso, distrito do Porto. A Escola Básica da Ponte é uma escola com práticas educativas que se afastam do modelo tradicional. Está organizada segundo uma lógica de projeto e de equipa, estruturando-se a partir das interações entre os seus membros. A sua estrutura organizativa, desde o espaço, ao tempo e ao modo de aprender exige uma maior participação dos alunos tendo como intencionalidade a participação efetiva destes em conjunto com os orientadores educativos, no planeamento das atividades, na sua aprendizagem e na avaliação. Não existem salas de aula, no sentido tradicional, mas sim espaços de trabalho, onde são disponibilizados diversos recursos, como: livros, dicionários, gramáticas, internet, vídeos… ou seja, várias fontes de conhecimento. Este projeto, assente em valores como a Solidariedade e a Democraticidade, orienta-se por vários princípios que levaram à criação de uma gr