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"A cadela do fascismo continua no cio"

Norman Rockwell

Inicio este texto com a célebre frase de Bertoldt Brecht: "a cadela do fascismo está sempre no cio". Todos sabemos que os tempos de hoje são tempos favoráveis às criaturas sombrias. O grande cineasta, George A. Romero, “pai” dos filmes de zumbis, morreu há pouco tempo, mas nos deixou de herança esta simbologia dos mortos-vivos e vivos-mortos. O que retorna dos túmulo permanece  vivo, mas agora é vivo-morto. A cinematografia recente vem trazendo nas suas representações os efeitos drásticos de se viver numa terra arrasada por zumbis. Por isso mesmo faço a escolha desta duas imagens para falar do retorno do ódio neste período recursivo da história, do ódio que mora no coração dos homens e que retorna como super bactéria, se alastrando pelo ressentimento cíclico ou por uma nova forma vil e gratuita de contaminação via redes sociais.

No Brasil, estamos vivendo tempos de terra arrasada, tempos de exceção, tempos de perda da nossa democracia - tão jovem -  junto à plena perda de direitos duramente conquistados por anos de luta e desassossego dos oprimidos, dos que estavam e ainda estão nos movimentos sociais, nos movimentos feministas e no feminismo negro, nos movimentos negros, quilombolas e indígenas, no movimento  LGBT etc.

Mas é “ódiquê”? (para lembrar um filme bem brasileiro). É o ódio ao povo, ódio ao negro, mas principalmente ódio à negra – que chegou ao ensino superior, à pós-graduação, ao Miss Brasil. É ódio aos nordestinos e mais ódio às nordestinas com suas “caras de empregadinhas”. O ódio às negras e nordestinas pobres que recebem o bolsa família e se recusam a voltar para as cozinhas sofisticadas dos neocolonialistas, que se recusam a trabalhar sem direitos nas novas senzalas.


O ódio da classe média-medíocre é o ódio às políticas públicas, às universidades que, na visão distorcida dos que odeiam, criaram cotas que “facilitaram” a entrada dos pobres, negros, nordestinos, a entrada de todas as margens para o lugar não destinado a elas: a mobilidade social. É o ódio tacanho, torpe, que mata e violenta todos os dias – os homossexuais, as mulheres, a juventude negra, as crianças pobres – e que vai num crescendo se formando avalanche e genocídio.

Quantas pessoas já foram assassinadas no Brasil em 2017? Quantas delas eram negras? E no mundo? Quantas eram imigrantes?  Quantas eram mulheres? Quantas eram crianças? Há uma relação muito estreita entre neocapitalismo, racismo, xenofobia e a negação dos excluídos. Declarar guerra aos pobres e aos indesejáveis é o tipo de absurdo que se pauta nas mesmas justificativas sempre utilizadas pelas classes dominantes para punir os considerados fracos e elimináveis: prender, vigiar, negar a existência. E se nada disso der certo – caçá-los com cães, matar e tirar da vista. Nas palavras de Foucault, em Vigiar e Punir:

“Apresentá-los como bem próximos, presentes em toda parte e em toda parte temíveis. É a função do noticiário policial que invade parte da imprensa e começa a ter seus próprios jornais. A notícia policial, por sua redundância cotidiana, torna aceitável o conjunto dos controles judiciários e policiais que vigiam a sociedade.”

É preciso sempre lembrar que esse discurso mata. Dizer no programa de televisão que “bandido bom é bandido morto”, mata. Esta semente diária do ódio que nasceu da injustiça social, assim como o desejo de massacre contínuo, a permanente ideia de eliminação do outro, todos esses elementos de ódio vão se tornando parte do nosso cotidiano, e como bem diz Foucault, vão tornando o discurso palatável, aceitável. Os “elimináveis” são apresentados aqui como parte temível. Eliminar faz parte do jogo que migra do discurso para a banalização da ação. E a julgar pelo que vejo, neste jogo do fascismo logo avançaremos uma casa e chegaremos ao “pobre bom é pobre morto”.

Mas de quantos mortos precisamos para fazer uma guerra?

Intolerância. Ódio. Falta de Empatia. Fundamentalismo Religioso. Homofobia. Machismo e Feminicídio. Radicalismo conservador. Há muito para se refletir sobre esses atos de violência e barbárie. As práticas discursivas da atualidade e o desejo paradoxal de empatia em tempos individualistas, de completa indiferença, além da alienação do outro nos torna testemunhas do estrangulamento do humanismo em mídias públicas.

Vivemos em tempos de cyber-sociedade. Quando algo da natureza do ódio estrutural acontece, como “vírus” em termos de rapidez e descarte, vai se tornando difícil encontrar, desenvolver qualquer código de compreensão da alteridade. Não falo em ética, algo mais profundo na escala do conhecimento. Falo de discernimento e compreensão, porque é o mínimo que deveria emergir dessa esfera mais à derme do humano. Também não falo em humanismo, outra demanda importante, mas ainda vista pelo conceitual. Quero falar da compreensão mínima do outro que está na base primeira do viver com, conviver. Compreensão como ação cotidiana, a da rotina mais usual entre os seres humanos. A compreensão da palavra, do gesto, da pessoa. Penso nessas relações líquidas, frágeis, instantâneas das novas sociabilidades, que giram nas mídias sociais e vejo o desrespeito total ao que é diferente, vejo linchamentos virtuais e o ódio disseminado através de mensagens viralizadas que só causam mais dor e mais violência. Ódio e o ressentimento sempre existiram, mas a dinâmica das redes sociais “ligou os pontos dos extremos”, amplificou, tirou do armário os que ainda tinham certo constrangimento de expor o machismo, o fascismo, o racismo, a homofobia, a transfobia, a xenofobia etc.

Culpabilizar o outro por seu isolamento cultural ou social, culpabilizar pela desterritorialização, migração, imigração, exílio – é o estopim do que há de pior nas ações de ódio. Quando os fascistas das manifestações se unem aos pseudo moderados do discurso - aqueles que odeiam, estruturalmente, deixam suas casas e constroem com as próprias mãos novos guetos, outros campos de exclusão e extermínio, outras fronteiras.

Com quantos ódios fazemos uma guerra? Com quantas guerras alimentaremos tanto  ódio?

Patricia Porto

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