Marina Marcolin |
- sentinelas da minha memória,
pois já não teço tapetes.
Sequer reparo os retratos –
o relógio e os pratos de porcelana.
Tenho onze anos...
Preciso correr pra sentir o vento:
minha avó tão bonita com seu traje fino,
a figura altiva de meu avô
numa foto de casamento.
A família reunida
e a oração de São Francisco –
todos gravados na parede principal –
no mesmo altar.
Dizem que as histórias não morrem.
São pequenas e delicadas agulhas
- vão juntando os fios da vida
e as sobras da saudade.
Depois ficam espetadas para o sempre
nas almofadinhas da caixa de costura e se- gre - dos...
Patrícia Porto
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O TEXTO SOBRE O TEXTO OU POR TRÁS DA TESSITURA DO TEXTO.
SENTIDOS E RESSONÂNCIAS DA HERMENÊUTICA
Rosângela Ferreira
Corro com suas chinelas
nas mãos
pelo imenso corredor da
casa
a fim de escutar
notícias.
O rádio na Voz do
Brasil
e o barulho insistente
da chaleira
anunciam o café e as 19
horas.
Levo meus olhos acesos
- sentinelas da minha
memória,
pois já não teço
tapetes.
Sequer reparo os
retratos –
o relógio e os pratos
de porcelana.
Tenho onze anos...
Preciso correr pra
sentir o vento:
minha avó tão bonita
com seu traje fino,
a figura altiva de meu
avô
numa foto de casamento.
A família reunida
e a oração de São
Francisco –
todos gravados na
parede principal –
no mesmo altar.
Dizem que as histórias
não morrem.
São pequenas e
delicadas agulhas
- vão juntando os fios
da vida
e as sobras da saudade.
Depois ficam espetadas
para o sempre
nas almofadinhas da
caixa de costura e se- gre - dos...
E o tempo... (também
ouvi dizer)
... é feito de
avós-meninas-meninos...
(PORTO, Patrícia. Relicário)
O texto literário e, principalmente, o poema, tem diversas aberturas,
constituindo-se em um texto plurissignificativo (Walty et al, 2000). De qual
assunto o poema de Patrícia Porto está falando? Da arte? Da poesia? Da
linguagem? De sua autora? De todos nós? Da vida? Da morte? Da educação? Da
história? Da memória? Da multiplicidade de enunciações que carregam a palavra?
Sendo o texto poético aberto a múltiplas leituras, pode-se compreendê-lo
em diversas possibilidades, inclusive as que não citamos. Também é importante
destacar que o inexplicável, o que fica pulsante, é o que mais importa num
poema. O que ficou pulsante nas palavras que enceraram nosso encontro será o
fio condutor do texto que aqui se constitui.
Como um ser no mundo que vai criando sua existência nas redes de
referências que estabelece no/com o mundo (Ricoeur, s/d) -, pois que a morte é
a certeza, Patrícia vem tecendo palavras e formando um todo coerente. Qualquer
que seja a nossa interpretação do poema ela estará carregada das vivências e
significados que atribuímos ao longo de nossas relações com os existentes. O
sentido e a ressonância da interpretação deste poema podem estar na fluidez que
a leitura provoca. Como numa teia de significados as palavras vão se constituindo
numa infinidade de possibilidades de compreensão, ligadas pela história e pela
compreensão que se tem das relações com a memória. De acordo com as colocações
do filósofo hermeneuta, a história nos sensibiliza quando nos abrimos às
modificações que impõe à memória, uma vez que a memória pode ser compreendida
como uma primeira instância da relação com o passado. Nas palavras de Ricoeur (1998 a ):
A
questão da historicidade já não é a do conhecimento histórico concebido como
método; ela designa a maneira como o existente “está com” os existentes. A
compreensão já não é a réplica das ciências do espírito à explicação
naturalista; ela diz respeito a uma maneira de ser próxima do ser, anterior ao
encontro de entes particulares. Ao mesmo tempo o poder da vida de se distanciar
livremente em relação a si mesma, de se transcender, torna-se uma estrutura do
ser finito. Se o historiador pode medir-se pela própria coisa, igualar-se ao
conhecido, é porque ele e o seu objeto são ambos históricos. ( p. 11).
“Dizem que as histórias não morrem. São pequenas e delicadas agulhas –
vão juntando os fios da vida e as sobras da saudade.” Recorremos as palavras da
poetisa para dizer que, envolvidos pelo tema central de nosso encontro - o
papel da memória nas discussões atuais -, tivemos a oportunidade de relacionar
tais colocações com os estudos iniciais sobre a hermenêutica interpretativa[1] do
filósofo francês Paul Ricoeur. Ao pensar na possibilidade de ver o passado como
algo que pode ser reconstruído a partir de uma visão multifacetada de um dado
conhecimento, discutimos a possibilidade do pesquisador, que busca compreender
o mundo pelo resgate de memórias, ser visto como alguém que tem uma escuta
sensível, podendo, dessa forma, religar saberes da história pelo resgate da
memória. A historicidade vai se constituir à medida que a compreensão da
memória individual/coletiva se consubstanciar numa perspectiva circular.
Noutras palavras, o pesquisador/narrador vivencia a palavra do outro numa
perspectiva de alteridade, dá sentido a essa palavra e busca compreender a
partir do que ressoar nele. A interpretação é vista, então, como própria do ser
e só pode ocorrer por “estar com” os existentes.
Com base nessa possibilidade investigativa, talvez se possa dizer que as
palavras de uma narrativa têm materialidade própria, quase a-temporal; as
mesmas palavras ou, se preferirmos, os mesmos significantes podem ser lidos em
diferentes fontes investigativas, inclusive no discurso. Para Ricoeur(s/d) essa
possibilidade existe no discurso escrito[2]
numa rede de referências que estabelece com o mundo. Nas suas palavras:
Do mesmo modo que liberta a sua significação da tutela
da intenção mental, o texto liberta a sua referência dos limites da referência
ostensiva. Para nós, o mundo é o conjunto das referências abertas pelos textos.
(...) Compreender um texto é, ao mesmo tempo, elucidar a nossa própria situação
(...). A espiritualidade do discurso se manifesta pela escrita, libertando-nos
da visibilidade e da limitação das situações, abrindo-nos um mundo, a saber,
novas dimensões do nosso ser-no-mundo. (RICOEUR, s/d, p. 190)
Dessa forma, a
linguagem é concebida como algo vivo e dinâmico e o discurso como instância que
“realiza-se sempre temporalmente e no presente, enquanto o sistema de língua é
virtual e estranho ao tempo” (RICOEUR, s/d, p. 186)
Para o
filósofo hermeneuta, uma ação deixa um rastro, põe sua marca quando contribui
para a emergência do curso dos tempos, que se tornam documentos da ação humana.
Ao conceber a memória como ação podemos discuti-la em termos de suas
estratégias, táticas, recepção e eficiência. Nas palavras de Ricoeur (id.), a
“ação é um fenômeno social, não apenas porque é a obra de vários agentes, de
tal modo que o papel de cada um deles não se pode distinguir o papel dos
outros, mas também porque os nossos atos nos escapam e têm efeitos que não
tínhamos visado.” (p. 195)
O discurso, por vezes, de longuíssima duração é o fio condutor de
leituras – ou escutas – que oscilam ambivalentemente diante da história. Ora
(leituras e escutas) parecem reconhecê-lo ao (con)fundi-lo com a extensão
temporal, ora parecem negar um fato ao reificar os significantes que passam a
se transformar em evidências, sinais auto-suficientes de si-mesmos.
Investigar as relações discursivas presentes em narrativas pode
possibilitar a análise de um leque de conhecimentos, no qual cada vareta possui
uma verve de um dado fato histórico.
Sobre isso diz Konder (2001, p. 18):
(...) enquanto não enxergarmos a dimensão histórica de
um ser, de um objeto, de um fenômeno, de um acontecimento, não podemos
aprofundar, de fato, a compreensão que temos deles. É o movimento histórico que passa por todas
as coisas e permanentemente as modifica que as torna concretas.(...) Se o
sujeito se abstrai do fluxo em que existe o objeto, em que se verifica o
fenômeno, em que se dá o acontecimento, ele afinal se incapacita para conhecer
aquilo com que se defronta. Falta-lhe a possibilidade de pensar a ligação
particular que está percebendo e o seu não ser, Isto é, aquilo que ele já foi
(e não é mais) ou aquilo que ele ainda não é (mas vai se tornar).
Ao pensar nas colocações de Konder (id.), pode-se fazer um breve
exercício do peso, papel e função que damos às palavras e às memórias quando se
reconstitui o meio, e se pesquisa quem e para quem se escreve; quem lê e por
que. Para tal, torna-se necessário investigar que tipo de vivências os
escritores/narradores tiveram. Noutras palavras, o “rigor” que precisaríamos
ter, academicamente falando, para que palavra e memória possam ser vistas numa
perspectiva de possibilidades interpretativas.
Ao ser sensibilizada no
sensível [3] pela memória, a palavra toma um lugar no
mundo e nos permite lidar com a percepção dos fenômenos mundanos. Dessa forma,
pode-se dizer que a palavra permite atribuir sentidos para o processo de
compreensão de um tempo outro, ultrapassando barreiras unilaterais do tempo de
sua produção.
Ricoeur
(1991), no livro O si-mesmo como um outro,
aponta três intenções filosóficas oriundas da relação sujeito/palavra inseridas
na fluidez de uma narrativa. A primeira marca o primado da mediação reflexiva
sobre a posição do sujeito tal como se exprime na primeira pessoa do singular;
a segunda busca uma dissociação entre identidade pessoal e identidade narrativa
no que tange as questões da temporalidade (p. 12); a terceira se centra na rede
de referências dialéticas do si e do diverso de si. O filósofo fala em redes
alteritárias nas quais um ser não deixa de pensar no outro. Sobre o terceiro
viés diz que:
O si-mesmo como
um outro sugere desde o começo que a ipseidade do si-mesmo implica a alteridade
em um grau tão íntimo, que uma não se deixa pensar sem a outra (...). Ao como
gostaríamos de ligar a significação forte, não somente de uma comparação - si
–mesmo semelhante a um outro -, mas na verdade de uma implicação: si-mesmo
considerado... outro. (p. 14).
“E o tempo... (também ouvi dizer)... é feito
de avós-meninas-meninos.”A delicadeza e suavidade das palavras finais do poema
nos remetem a um transitar de enunciações que podem abrigam a relação
memória/história. Com base nessa possibilidade interpretativa, podemos dizer
que o exercício hermenêutico a que nos propomos foi o de iniciar uma busca de
fundamentações para se discutir a memória sob esse viés metodológico como uma
forma outra de interpretar fatos e romper com o tempo de agoras. Nesse caso, a
compreensão/explicação se funda no viés de possibilidades e não de
objetividades. Numa perspectiva de fluidez, o narrado/escrito pode
reconhecer-se capaz de projetar-se em possibilidades pelo resgate de
memórias/histórias tendo a palavra/texto como vetor de atuação. Ao
desfolhar diversas dimensões de uma memória, assim como Ariadne, puxando fios
simbólicos relativos às imagens projetadas pelas vivências do ser-no-mundo, talvez
possamos buscar sentidos e significados transcendentes e, dessa forma, ver uma
infinidade de “Relicários”.
Referências
bibliográficas
ALBERTI, Verena.Crítica à hermenêutica.
Internet, s/d.
KONDER, L.
A questão da ideologia. Rio de
Janeiro: (Mímeo), 2001.
RICOEUR, P. Teoria da Interpretação: O discurso e o excesso de significação. Lisboa
(Portugal): Edições 70, 1991.
______.Do texto à ação. Ensaios de hermenêutica II. Porto (Portugal):
Rés-Editora, s/d.
______. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Porto
(Portugal): Rés-Editora, 1988
a .
[1]O
sentido etimológico da palavra hermenêutica se liga ao verbo grego hermeneim, ao qual pode ser atribuído
três significados: dizer – no sentido de exprimir em voz alta, explicar e traduzir – tanto no sentido de passar de uma
língua para outra como também no de compreender historicamente. O termo se
relaciona, ainda, ao substantivo grego hermeneia
– que significa interpretação, objeto. Dessa forma, pode ser entendido como
possibilidade de compreender algo incompreensível. Dizer alguma coisa sobre
algo já é interpretar. Sendo assim, o sentido pode ser concebido para além do
seu enunciado, levando-nos a compreender o texto como ação. (ALBERTI, Verena,
s/d)
[2] Um
ponto que cabe discutir é o que fundamenta as idéias de Ricoeur centradas no
discurso escrito. Sendo assim, como ficaria a instância da oralidade? Poderia a
linguagem se consubstanciar em discurso escrito e assim se legitimar para além
do seu tempo de produção? Para Ricoeur (s/d) “ A acção sensata só se torna
objecto de ciência n condição de uma espécie de objetivação equivalente à
fixação do discurso pela escrita. Do mesmo modo que a interlocução sofre uma transmutação
análoga a inúmeras situações em que a
acção se deixa tratar como um texto fixado. Estas situações são desconhecidas
em toda teoria da acção pela qual o discurso da acção é, ele próprio, uma parte
da situação da transacção que se faz um agente para outro, exactamente como a linguagem oral fica presa no processo de
interlocução ou, se se pode usar a palavra, de translocução.” (p. 192)
(Grifo nosso)
O grifo decorre da
necessidade de discutirmos que, talvez, o filósofo estivesse nos dizendo que a
oralidade pode se perder se não ganhar um referencial escrito. Com tal
pensamento liga a esfera do discurso à da ação.
[3]
Perspectiva defendida por Ricoeur (1988 b) numa interpretação hermenêutica que
considera as escolhas e as disposições do humano no mundo como formas de
afetação.
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