(Para os meus filhos que me educam sobre amor, infâncias e margens.)
Ser mãe, pai de alguém exige, logo de início, três idades: matur-idade, sensibil-idade, gêneros-idade. Você se torna pai e mãe de alguém quando, aos poucos, percebe que vai precisar por um bom período da vida cuidar mais de outra pessoa que de si mesmo, e como na oração de São Francisco aprende que pode amar muito mais do que ser amado e que pode perdoar mais que esperar ser perdoado. É por vezes aquele fogo esplêndido que nos torna divinos, próximos do alto e do ato de toda criação humana. E também é o abismo a engolir nossos pés, a nos revelar sobre a superfície sombria que há no diálogo com as pedras e que nos faz plenos do humano que vive dentro de nós.
Ter filhos não é e nem se pode comparar com plantar uma árvore ou escrever um livro. Eu que já fiz os três sei por pele à flor que “filhos” superam as outras duas experiências e que ela, a experiência de “tê-los e sabê-los” é que nos golpeia com o melhor e o pior da nossa própria natureza. Prefiro aqui falar do melhor, pois do melhor depende o suficiente de nós. E essa parte que depende de nós é feita de trabalho, um artesanato continuo que comunga com o estar aberto a entrar na roda e girar ao seu sabor e saber. Afinal há sempre o imponderável, a surpresa, o tal inesperado de viver. Perigoso como disse o Rosa.
E há de tudo nesse exercício e de tudo se vive “um pouco”: um pouco de medo, um pouco de insegurança, um pouco de choro. E se vive também do “tanto”: de tanto orgulho, tanto alívio, tanto respeito. E é claro, se vive do “baita”: baita alegria, baita susto, um baita desespero se chora sem que se saiba o porquê ou se fica sem conseguir respirar direito no meio da madrugada. Você quer ser o ar, um sopro de cura repentino ou quer mesmo transferir o seu peito pro dele ou dela – com as próprias mãos estendidas. E torce pra que a noite se torne dia imediatamente e a noite vai ficando longa de doer sem fim. Então você pode, inevitavelmente, vir a descobrir que tem pouco: pouco recurso, pouco dinheiro, pouco sossego. E descobre que tem muito: muito amor, muito amor, muito amor. E se doa de graça como nunca imaginou fazer na vida. Você que era tão egoísta, tão yuppie, tão workaholic, tão porra loca, tão “não tô nem aí”... Encantado agora com aquela coisinha fofa... Tão preocupado com a nota de Física. Você que era tão politicamente frio vira manteiga derretida de carteirinha, de platéia e arquibancada.
Ser mãe ou pai de alguém é também precisar contar: contar as noites de sono sem dormir, contar os carneirinhos quando se tem noite, mas a insônia vem e eles não chegam em casa, contar os dias que faltam pros pequenos irem pra escola pela primeira vez ou contar os dias que faltam pra chegada deles que foram fazer aquela viagem dos sonhos pra um país que você não sabe sequer pronunciar o nome. E que de lá deram aquele pulinho de alguns bons anos conhecendo o mundo, se aventurando em outras viagens. E aí você conta: conta uma história pra dormir, conta as moedas pro sorvete, conta uma notícia triste, conta uma anedota, “aquela do papagaio que...”, conta as suas travessuras quando menina, menino; conta que se esbaldou no primeiro, segundo, terceiro Rock in Rio só pra dar aquela concorrida. E conta, conta com a fé, com a esperança – sempre, última, pequenininha, com o santinho já suado de torcido na mão. Você se agarra nela: esperança, porta, saída, quando todos já desistiram, já baixaram a cortina ou fecharam pra balanço. Você é a última pessoa, a pessoa que não apaga a luz nem mesmo quando o mais sensato é economizar. Economizar o espírito, o coração. Ah, o coração. Esse sofre! Quando não morre mesmo! Várias vezes! Por dias, meses, anos a fio. Vai lá o coração: na boca! No estômago! No corpo inteiro e como disse o poeta Maiakovski: “somos todo coração”. E somos lágrimas, risos, sentimentos confusos, de espelho, de figuras gregas. Queremos dar o que não tivemos ou tomar o que tivemos de sobra. Dias de estranhezas e profundezas na alma. E podemos até nos confundir com eles nas quedas dos saltos, nas asas deles podemos imitar a nossa ideia de liberdade; pro que liberta ou castra, pro que não sabemos ou não ousamos libertar de nós.
Filhos: eles são sempre mais jovens que nossos olhos, que nossas possibilidades de enxergá-los com mais clareza. E por isso mesmo há neles e é deles o novo viço da vida, a beleza dos pequenos extraordinários, o ímpeto, o sublime e a aventura. Sim, eles estão mais perto da primeira parca e é deles todo um tecido que há pela frente para se passar o bastão, o chão da terra roxa. Que bom quando não há nenhuma trapaça, nenhum tipo de traça tentando ruir o que é somente deles: o sonho, o desejo, a vontade de ser mais ou menos, mais e menos, menos e mais. Ser pai e mãe então é refletir: sobre a espera, sobre o tempo, sobre as angustias diante do começo ou do fim, refletir sobre o ser mesmo, sobre as certezas arruinadas, sobre saber se despedir quando é preciso, sobre margens desde cedo anunciadas. E ser criança na infância que ele traduzir. E saber que não se pode libertar o que já nasceu liberto para ser inteiro.
Ser mãe e pai é re-aprender todos os dias aquelas quatro operações matemáticas: dividir, somar, diminuir e multiplicar. Diminuir talvez a mais difícil, como cortar na carne, sair do centro pra viver a delicadeza da periferia. Falar menos, ouvir mais. Sorrir mais, podar menos. Abraçar mais, o que conseguir. É nossa a sabedoria. E serão nossos também o que eles saberão de melhor na terra: os filhos deles, os netos. A vós... Avós são uma outra margem... Como migalhinhas de pão, doces de chuva, histórias de outras vidas, as mais antigas, as mais sonoras de todas...
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