Imagem: Sebastião Salgado, São Juan, 1979. |
Algumas experiências da minha infância marcaram definitivamente a minha trajetória discente e depois, por desejo e necessidade, as mesmas experiências me ajudaram a constituir a minha trajetória docente. Uma dessas experiências foi a de ser diagnosticada com dislexia aos dez anos idade. Lembro da irmã capuchinha, professora de português do Divina Pastora dizendo a minha avó num misto de pena e constrangimento: “_ O que acontece, dona Josefa, é que a sua neta tem apresentado muitos problemas na leitura, na escrita e na comunicação. E depois dos testes, das muitas avaliações que nós fizemos se pode afirmar que o que ela tem mesmo é dislexia.”
Minha avó tampouco se abateu: “_ Irmã, isso faz o quê? Mata!?” “Não, não matava!” Foi o que a irmã respondeu a minha avó. Mas eu me lembro bem de sair da sala da diretora com um novo campo de palavras na cabeça, uma nova semântica: “leitura, escrita, timidez, não fala, não se comunica, vocabulário pobre, avaliação, reprovação, incapacidade de aprender, diagnóstico, dislexia... Mas não mata!” Na volta para casa, minha avó passou na quitanda do meu tio: “ _Nhô, tem caderno aí? Pega uns cinco.” Fiquei assustada: “_ Vó, pra que tanto caderno?! Perguntei. Era castigo?! Pergunta de um tempo em que a escola e os meus professores só me ensinavam sobre como ser castigada para aprender. Para eles a reprovação, o risco vermelho na prova, o grito, a estupidez, as palavras negativas que só sabiam criar ecos assustadores dentro do meu espírito humano, eram o elixir, a paideia de lanternas acesas que salvaria a minha existência pagã e queimaria em praça pública como exemplo e sacrifício a minha burrice genética ou adquirida.
No entanto, minha avó, que era sábia de outro tipo de natureza, a humana, respondeu “passando a mão na minha cabeça”... Porque às vezes é o que a gente carece: que passem a mão na nossa cabeça. Não que nos salvem, como aos gentios. Então disse minha avó com a voz que vem do coração e não da cabeça: “_ Um caderno pra fazer de diário, outro pra escrever carta pra Doquinha (minha mãe que morava no Rio de Janeiro), outro pra escrever minhas receitas, outro pra fazer cópia de livro...” Fez um silêncio, coçou o queixo... “E o quinto, vó, pro que é?” “Ah, no quinto você escreve uns versinhos de amor, umas histórias de visagem... Escreve, escreve o que quiser..."
Escreva, escreva, escreva.... É o que queria minha avó contra todo o diagnóstico determinista e formal que dizia lá como registro, no vale porque está escrito e o escrito era: "vocabulário pobre". Mas minha avó sabia que "vocabulário pobre" não matava e se não matava tinha jeito. E lutou com armas que tinha para que eu não aceitasse e cumprisse aquela profecia de "incapaz" como a minha verdade diante do mundo e das letras. E por conta de todo o incentivo, do elogio, do otimismo da minha avó, eu realmente não aceitei aquele primeiro determinismo, aquele factum não foi aceito. Para a escola eu seguia reprovada, incapaz, disléxica, mas para a minha família eu era “a escritora”. Isso fez toda diferença não só na minha vida escolar, como também na minha vida dividida com os outros, porque uma vida está sempre dividida com os outros, é sempre uma ilha em partilha em eterno estranhamento. Naquela casa nós partilhávamos de todo o pão, do corpo e da alma. E enquanto uma professora se dirigia a mim: “ah, não tem jeito, é demente, é burra mesmo!” Minha avó e minha família numerosa de tios e primos “nada protetores”, mas muito amorosos, diziam: “vai, você consegue! Escreva, escreva, escreva... Leia, leia, leia...” Esses acontecimentos multiplicaram a minha crença nos outros e em mim, marcando "definitivamente" a minha trajetória discente e, depois: a minha trajetória doce docente, arte transitória e docente.
Ontem e hoje entendo perfeitamente quando uma menina, um menino, um jovem, uma criança, uma senhora ou um senhor me dizem ao pé do ouvido: “eu não consigo aprender, professora, eu sou burro, eu sou burra.” Escolhi estudar português, a língua materna, a mãe de todos que sempre me reprovava, a língua do poder legitimado que a escola que eu frequentava usava para me rejeitar para, anos mais tarde, enfim poder dizer aos refletidos no meu olhar: “você sabe sim! Você consegue! Você aprende! Vamos comer palavras, vamos devorá-las!” Eu aprendi e não somente aprendi como também passei a ensinar o português de muitos vocabulários. Que transgressão! Por isso me considero uma boa professora e não tenho modéstia alguma sobre isso! Podem reprovar a minha maneira de dar aulas, mas não podem reprovar, matar a minha vontade de ensinar e aprender. E eu escolhi ensinar português, o português da arena de conflitos e dos jogos de interesses simbólicos e ideológicos, escolhi ensiná-lo para crianças, jovens e adultos reprovados, violentados pelos estigmas e diagnósticos, apartados da língua do poder, do currículo hegemônico que permeia a escola de todos os tempos. E eu ensino um português polêmico, oculto e explícito, que entrega aos meninos de bandeja: poemas de Maiakovski, o teatro de Bretch e de Maria Clara Machado, as trapaças linguisticas da poesia entre outras iguarias finíssimas que abrem olhos, mentes e corações.
Gosto se aprende e se discute sim. E é com os meus alunos que eu aprendo a ser professora de português diariamente no trabalho de reinvenção com a língua portuguesa, reaprendendo também, pela experiência, a ser uma pessoa humana melhor a cada dia, uma pessoa que “afina e desafina”, que se estranha e que estranha o outro, mas que tem neles, meus alunos, e a partir deles, meus companheiros de jornada, uma confiança inabalável na educação como único instrumento de mudança. Sou radical neste ponto. Só acredito vendo e fazendo. E não aceito o “nunca” como resposta. Um "por enquanto", "um talvez"...
Minha avó tampouco se abateu: “_ Irmã, isso faz o quê? Mata!?” “Não, não matava!” Foi o que a irmã respondeu a minha avó. Mas eu me lembro bem de sair da sala da diretora com um novo campo de palavras na cabeça, uma nova semântica: “leitura, escrita, timidez, não fala, não se comunica, vocabulário pobre, avaliação, reprovação, incapacidade de aprender, diagnóstico, dislexia... Mas não mata!” Na volta para casa, minha avó passou na quitanda do meu tio: “ _Nhô, tem caderno aí? Pega uns cinco.” Fiquei assustada: “_ Vó, pra que tanto caderno?! Perguntei. Era castigo?! Pergunta de um tempo em que a escola e os meus professores só me ensinavam sobre como ser castigada para aprender. Para eles a reprovação, o risco vermelho na prova, o grito, a estupidez, as palavras negativas que só sabiam criar ecos assustadores dentro do meu espírito humano, eram o elixir, a paideia de lanternas acesas que salvaria a minha existência pagã e queimaria em praça pública como exemplo e sacrifício a minha burrice genética ou adquirida.
No entanto, minha avó, que era sábia de outro tipo de natureza, a humana, respondeu “passando a mão na minha cabeça”... Porque às vezes é o que a gente carece: que passem a mão na nossa cabeça. Não que nos salvem, como aos gentios. Então disse minha avó com a voz que vem do coração e não da cabeça: “_ Um caderno pra fazer de diário, outro pra escrever carta pra Doquinha (minha mãe que morava no Rio de Janeiro), outro pra escrever minhas receitas, outro pra fazer cópia de livro...” Fez um silêncio, coçou o queixo... “E o quinto, vó, pro que é?” “Ah, no quinto você escreve uns versinhos de amor, umas histórias de visagem... Escreve, escreve o que quiser..."
Escreva, escreva, escreva.... É o que queria minha avó contra todo o diagnóstico determinista e formal que dizia lá como registro, no vale porque está escrito e o escrito era: "vocabulário pobre". Mas minha avó sabia que "vocabulário pobre" não matava e se não matava tinha jeito. E lutou com armas que tinha para que eu não aceitasse e cumprisse aquela profecia de "incapaz" como a minha verdade diante do mundo e das letras. E por conta de todo o incentivo, do elogio, do otimismo da minha avó, eu realmente não aceitei aquele primeiro determinismo, aquele factum não foi aceito. Para a escola eu seguia reprovada, incapaz, disléxica, mas para a minha família eu era “a escritora”. Isso fez toda diferença não só na minha vida escolar, como também na minha vida dividida com os outros, porque uma vida está sempre dividida com os outros, é sempre uma ilha em partilha em eterno estranhamento. Naquela casa nós partilhávamos de todo o pão, do corpo e da alma. E enquanto uma professora se dirigia a mim: “ah, não tem jeito, é demente, é burra mesmo!” Minha avó e minha família numerosa de tios e primos “nada protetores”, mas muito amorosos, diziam: “vai, você consegue! Escreva, escreva, escreva... Leia, leia, leia...” Esses acontecimentos multiplicaram a minha crença nos outros e em mim, marcando "definitivamente" a minha trajetória discente e, depois: a minha trajetória doce docente, arte transitória e docente.
Ontem e hoje entendo perfeitamente quando uma menina, um menino, um jovem, uma criança, uma senhora ou um senhor me dizem ao pé do ouvido: “eu não consigo aprender, professora, eu sou burro, eu sou burra.” Escolhi estudar português, a língua materna, a mãe de todos que sempre me reprovava, a língua do poder legitimado que a escola que eu frequentava usava para me rejeitar para, anos mais tarde, enfim poder dizer aos refletidos no meu olhar: “você sabe sim! Você consegue! Você aprende! Vamos comer palavras, vamos devorá-las!” Eu aprendi e não somente aprendi como também passei a ensinar o português de muitos vocabulários. Que transgressão! Por isso me considero uma boa professora e não tenho modéstia alguma sobre isso! Podem reprovar a minha maneira de dar aulas, mas não podem reprovar, matar a minha vontade de ensinar e aprender. E eu escolhi ensinar português, o português da arena de conflitos e dos jogos de interesses simbólicos e ideológicos, escolhi ensiná-lo para crianças, jovens e adultos reprovados, violentados pelos estigmas e diagnósticos, apartados da língua do poder, do currículo hegemônico que permeia a escola de todos os tempos. E eu ensino um português polêmico, oculto e explícito, que entrega aos meninos de bandeja: poemas de Maiakovski, o teatro de Bretch e de Maria Clara Machado, as trapaças linguisticas da poesia entre outras iguarias finíssimas que abrem olhos, mentes e corações.
Gosto se aprende e se discute sim. E é com os meus alunos que eu aprendo a ser professora de português diariamente no trabalho de reinvenção com a língua portuguesa, reaprendendo também, pela experiência, a ser uma pessoa humana melhor a cada dia, uma pessoa que “afina e desafina”, que se estranha e que estranha o outro, mas que tem neles, meus alunos, e a partir deles, meus companheiros de jornada, uma confiança inabalável na educação como único instrumento de mudança. Sou radical neste ponto. Só acredito vendo e fazendo. E não aceito o “nunca” como resposta. Um "por enquanto", "um talvez"...
Como professora há mais de dezoito anos me habituei a ler, escrever e ouvir muitas histórias, histórias que me co-moveram, que me fizeram voltar à universidade, que me fizeram acreditar que era possível realizar aquilo que pertencia apenas ao campo da utopia, aquele lugar que não existe, mas insiste ser crença. Por bastante tempo pensei a escola de qualidade como lugar para poucos e privilegiados. Mas foi o trabalho “ético e estético” com a arte literária nas salas de aula que me fez usar os sentidos para olhar e compreender que o conhecimento, em todos os tempos, foi feito por homens e mulheres, crianças que tinham “algo” a dizer e mostrar. Um “algo” a dizer e mostrar às gerações futuras e eles fizeram desse “algo” tecido, desse poiesis singular e insubstituível - a cultura, a arte, a ciência, a literatura, a linguagem, o movimento, a transformação, que no todo e nas partes, se faz comunhão entre o sonho e a vida. E eu sonho muito.
Patricia Porto
Patricia Porto
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