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Narrativas Memorialísticas: Para Alfabetizar o Rei - “Todo menino é um Rei. Eu também já fui Rei...”

   

                   Esta é a história de Renato, meu aluno e meu amigo. Quando conheci Renato alguns já diziam que “ele não tinha mais jeito”, era uma criança “irrecuperável...” “Uma simples questão de tempo.” Aos dez anos de idade, ainda no 3º ano, aquele menino franzino e assustado com tudo e todos, já tinha sido, por diversas vezes, julgado e sentenciado à morte intelectual. Tratava-se na época de mais um “aluno moribundo”, fadado ao insucesso e enviado para minha classe de Re-alfabetização, o CTI dos “casos perdidos”. Minha sala ficava onde antes era o almoxarifado da escola ou porta-treco, guarda-tudo. Um lugar abafado, entre livros esquecidos e restos de material escolar, coisas e mais coisas que, juntas, criavam uma bricolagem inusitada. As crianças, sempre com grande desconfiança, passavam pela sala ou por mim correndo e assustadas, algumas até se esquivavam quando eu me aproximava. Um dia segurei as mãos de uma menina e perguntei: “O que está acontecendo? Vocês têm medo de mim?” E ela respondeu: “É que a tia sempre diz que se a gente não se comportar direito a gente vem pra cá.” Desse jeito, a minha sala de aula aos poucos foi se tornando um gueto e uma cela, lugar para onde deveriam ir os “condenados”. E eu era a professora que ninguém queria com os alunos que também ninguém queria. E a nossa sede se tornou a nossa fonte de água e o nosso estigma a nossa força contra a intolerância e a indiferença.

                  Recebi meu aluno Renato com o seguinte relatório: “o aluno não consegue escrever espontaneamente. Aglutina letras sem sentido algum.” O “diagnóstico” era uma lista de disfunções, deficiências e distrações. Ele já tinha uma ficha enorme de advertências, expulsões e atropelos pelo mundo, porque tem gente que sofre mais que outros de atropelos pelo mundo e de atropelos pela escola... As razões para o fracasso escolar de Renato eram variadas: “o lar problemático”, “a violência doméstica”, “o envolvimento de familiares com o tráfico”, “ter presenciado o assassinato do tio”, “o abandono dos pais”, “a avó permissiva que o criava”, “a miséria da favela, agora chamada de comunidade”, “a miopia”, “a dislexia”, “a hiperatividade”, “a falta de limites”, “a agressividade” e até “o tal bicho carpinteiro” que não deixava ele quieto, parado na carteira. Uma história de desventuras sem fim.

                     Durante minhas aulas na classe de Reintegração, Renato foi, aos poucos, se revelando um ótimo ouvinte, escuta sempre atenta e ativa (sem hiper). Gostava de ouvir as histórias que eu lia ou contava, principalmente as histórias que falassem de um Rei, de um castelo num reino encantado numa terra distante... Algumas vezes ele se encolhia mais e mais quando havia qualquer ameaça de perigo. Seu corpo falava por si me ensinando a ler seus sinais. Para mim, uma nova forma de comunicação. Quando a atividade não o interessava, ele pedia pra ir ao banheiro e ficava “zanzando” pela escola. Mas alguém sempre o trazia, segurando pelo braço e o largava na sala. Uns olhos arregalados de pavor! “Não vai fazer nada comigo? Você é trouxa mesmo.” Eu não respondia. Trouxa mesmo. Não respondi várias vezes. Era o meu exercício de esperança, esperança ativa. E nós tacitamente sabíamos um do outro e esperávamos a cada dia algo melhor um do outro. E assim foi, caminho torto, “gauche” mesmo, entre Reis, castelos, assombrações e finais cada vez quase, quase felizes. No segundo semestre, quando a atividade não o interessava, ele me pedia uma folha em branco e desenhava e escrevia palavras aglutinadas, cheias de sentido. E os seus sentidos diante da vida com a sua linguagem única de mundo iam então aparecendo no papel.

                 Fechando o segundo semestre, resolvi contar para a classe a história de um Rei muito especial: “O Rei da Fome” de Marilda Castanha. O livro contava a história de um rei que não sabia ler porque durante anos ninguém o havia ensinado. Revoltado com aquela situação, ele passou a devorar todos os livros do reino. Não o interessava que outros quisessem ler. Seguia comendo: autores renomados, tragédias e comédias, enciclopédias inteiras, obras raras, toda e qualquer literatura. O Rei “traçava” tudo o que aparecia pela frente e assim foi comendo, devorando - até chegar o dia em que um fiel súdito descobriu o seu mistério: o Rei não sabia ler. Era isso! Triste e receoso com a descoberta de seu segredo, o Rei pediu então ajuda ao bom rapaz para realizar a contento um sonho antigo: ler com prazer. Final feliz? Sim, o Rei se alfabetizou e passou a ler de tudo, toda e qualquer literatura.

Ao terminar de contar a história olhei para Renato, esperando um sinal positivo. Não veio. Ele parecia desinteressado, brincando com tazos. Curiosa, perguntei: “E aí? Gostou da história de hoje?” Ele prosseguiu de cabeça baixa: “Não tem graça! Esse Rei daí é um otário!” Apontou para o livro e pediu para ir ao banheiro. Não voltou. Faltou. Um dia. Dois dias. E eu tive medo de perguntar. “Estava doente? O que tinha acontecido? Logo agora no final?!”

                  No terceiro dia ele apareceu. Ficou mudo durante a aula. No final me entregou um texto que reescrevo aqui distante da ortografia e emoção originais:

“Crescer é bom que nós todos podemos aprender e desenvolver também nosso pensamento. A gente fica maduro, mais forte no pensamento, melhor na escrita, com mais força para se defender das mudanças da vida e outras coisas piores.”
Renato


               Alfabetizar o Renato foi um dos grandes desafios da minha história de vida. Desvendei com ele cada palavra, pedaços de escrita, sentidos inteiros, agrupados, amarrados e enfim soltos como pipas no ar. Nós atravessamos juntos desertos de folhas em branco e por vezes tivemos que recuar para aprender a lidar com nossa ansiedade. Ficamos emocionados com o primeiro texto “grande” que ele escreveu e choramos e nos abraçamos ao dizer “até mais”. E embora essa história aqui termine com uma despedida, nela renascemos ambos - e plenos.


Patricia Porto

Comentários

  1. Patricia

    Essas experiências fazem a vida (não só a profissional, mas a condição de humanidade que todos compartilhamos) valer a pena.

    BJO,

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  2. Obrigada, Simone. É esse reconhecimento e essa identificação que me faz sempre acreditar e prosseguir.

    ResponderExcluir
  3. Não há quem não tenha tido um Mestre assim que não se emociona com seu relato.

    Que Deus dê a todos os Renatos e Renatas desta vida Patrícias como você!

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