Memória de territórios
(Professora Patricia Porto)
(Professora Patricia Porto)
Comecei a trabalhar aos quatorze anos de idade. Fiz de tudo um pouco, armarinho, aula particular, loja de bugigangas, escritório, fábrica, banco e por fim, escola e universidade. Acho que me fiz ser humano pela cultura do trabalho. Não sei ser outra pessoa sem passar por esse viés. Conheci muita gente neste percurso, muitas companheiras, muitos companheiros de jornada, e aprendi desde cedo – com eles – dividir o fardo, me solidarizar e me incomodar profundamente com a injustiça social. Não foi um caminho fácil até chegar à universidade. Estudante de escola pública uma vida inteira, ao chegar na universidade tive que enfrentar o desafio de ser uma estudante trabalhadora, da classe trabalhadora. Não à toa levei sete anos para me formar em Letras, com muita luta, com muito custo. Não foram poucas às vezes que pensei em desistir. Até mesmo cheguei a desistir, mas retornei porque tinha um sonho. O sonho de me tornar educadora. Era um sonho que me mantinha viva, que me mantinha atenta, que justificava as correrias, os sacrifícios, os dias sem dinheiro para comprar livros, os dias de muita luta para dar conta dos tantos trabalhos, textos, monografias. Foram muitas as noites mal dormidas. Foram muitos os choros engolidos na frente de professores rudes que não entendiam o que era ser aluna, aluno do ensino noturno.
Tornei-me professora e optei por trabalhar com a EJA, optei porque me identificava com os alunos trabalhadores, porque sabia o que eles passavam à flor da minha pele, porque ao olhar para minha aluna, meu aluno, eu sabia o tamanho da sua vontade de conseguir. Já se vão duas décadas de trabalho com esses que fizeram e fazem parte deste sonho que eu continuo perseguindo. Na universidade trabalhando com grupos diversos em várias licenciaturas, pude me tornar a formadora de outros educadores, futuros professores que vinham de lugares diferentes. Pude acompanhar a mudança política na educação, acompanhar de perto a entrada de alunos cotistas, alunos vindos da mesma escola pública que eu também tinha vindo, alunas negras, alunos negros, nordestinos pobres – como eu, alunos trabalhadores.
Sou feliz com o caminho que escolhi. Por isso não desisto do meu país. Não desisto da educação. Não desisto da política e do sensível. Não desisto de acreditar que podemos sim fazer a diferença. E faremos. Feliz Dia do Trabalho!
A DESMEMÓRIA
(Eduardo Galeano)
Chicago está cheia de fábricas. Existem fábricas até no centro da cidade, ao redor de um dos edifícios mais altos do mundo. Chicago está cheia de fábricas, Chicago está cheia de operários.
Ao chegar ao bairro de Heymarket, peço aos meus amigos que me mostrem o lugar onde foram enforcados, em 1886, aqueles operários que o mundo inteiro saúda a cada primeiro de maio.
— Deve ser por aqui – me dizem. Mas ninguém sabe. Não foi erguida nenhuma estátua em memória dos mártires de Chicago nem na cidade de Chicago. Nem estátua, nem monolito, nem placa de bronze, nem nada.
O primeiro de maio é o único dia verdadeiramente universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem todas as histórias e todas as geografias, todas as línguas e as religiões e as culturas do mundo; mas nos Estados Unidos o primeiro de maio é um dia como qualquer outro. Nesse dia, as pessoas trabalham normalmente, e ninguém, ou quase ninguém, recorda que os direitos da classe operária não brotaram do vento, ou da mão de Deus ou do amo.
Após a inútil exploração de Heymarket, meus amigos me levam para conhecer a melhor livraria da cidade. E lá, por pura curiosidade, por pura casualidade, descubro um velho cartaz que está como que esperando por mim, metido entre muitos outros cartazes de música, rock e cinema.
O cartaz reproduz um provérbio da África: "Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador".
(Publicado no "Livro dos Abraços")
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