Mal
atravesso a rua e vejo na esquina uma mãe falando aos berros com uma criança,
um menino de cinco anos talvez. ”Disse pra você que tinha que fazer o dever de
casa, não disse! Agora sua professora fala pra você que era pra ontem?!”
O que poderia existir de estranho numa mãe dando bronca em seu filho por
não fazer o dever de casa? A meu ver, poderíamos começar questionando o papel
do “dever de casa” para uma criança tão pequena. Por isso vou pedir que
rebobinem a fita. Claro, não temos mais fitas pra rebobinar. E a pergunta então
coça: por que tanta pressa? Por que no final de período letivo encontramos uma
criança pequena apavorada, uma mãe estressada e uma professora... Bem, a
professora é “pra ontem”! Como a nossa educação brasileira que vem sendo fomentada
ou para ontem ou para um amanhã que nunca chega de fato. Penso que o
pobre do futuro deva estar até corcunda de tanto peso que jogam pra ele.
Não consigo entender e muito menos aceitar esse
tipo de método que inclui e impõe responsabilidades extremas às crianças,
e para crianças ainda tão pequenas. Por que tão cedo? Ah, sim, é o “pra
ontem”! Se ao cinco está assim, aos dez certamente estará tomando ansiolíticos
com o consentimento e aplauso de toda gente. Aos treze será diagnosticado como
bipolar por um sujeito que teoriza sobre o assunto, tomará antidepressivos,
consumirá todos os outros tipos de drogas até chegar aos dezoito quando decidirá
participar de um reality show de reabilitados para enfim se reintegrar à
sociedade. Tudo isso assim, num estalo de dedos: pra ontem!
Vivemos no mundo das
megacorporações, dos executivos de ponta, do empreendedorismo, do mercado competitivo
e agressivo, do CEO’s. Disso sabemos. Mas pergunto de novo: quem ocupará esses
lugares na grande cadeia alimentar da monstrópolis? Os nossos filhos e netos?
Ou os meninos que estudaram desde a pré-escola nas escolas bilíngues, falam
mandarim, fizeram MBA nas melhores universidades do ranking mundial? Que
ilusão é essa sorrateira, perversa, que faz pais zelosos jogarem seus filhos
tão cedo e tão logo ao refugo dos seres que rastejam por sucesso? Não entendo e
não aceito.
Vejo meninos e meninas com dez, onze anos com
agendas abarrotadas de afazeres. Estão deixando de viver suas infâncias e mal
sabem o que é brincar pra valer. Os pais exigentes pressionam seus filhos
para os resultados, para a competição – quase sempre desigual. Colocam na
cabeça das crianças que elas precisam se tornar “sociáveis, vencedoras, pessoas
bem sucedidas”. O fracasso é a desordem do século XXI. Ser tímido já em
si ser fracassado. Ser mediano nas notas significa um fracasso. Ser diferente é
um caos completo. Queremos uma juventude alta, atlética, bonita e bem
sucedida. E tudo o que não couber nesse pacote deverá ser descartado.
O padrão estético é uma das exigências dessa nova mentalidade. É a
ontogênese de plástico. Os corpos devem ser esculpidos, feitos em blocos
de produção de massinhas nas academias que se proliferam numa proporção
diametralmente oposta ao número de bibliotecas, livrarias e espaços culturais.
Uma monstrópolis mesmo, uma multidão sem cabeça.
E aí chegamos a um paradoxo inevitável:
como a multidão sem cabeça conseguirá gerar maior equilíbrio num mundo cada vez
mais desequilibrado? E desequilibrado emocionalmente, apesar do abuso dos
psicotrópicos. Em países mais desenvolvidos o número de suicídios cresce de
forma alarmante entre os jovens. A depressão será a grande doença vilã do
fim de século. Mas será que paramos para imaginar como será a velhice dos
centenários depressivos do século XXI? O homem viverá mais. Que homem? Pra quê?
Como a ciência que aumenta anos de vida poderá sanar a ansiedade, o mal estar
contemporâneo, o aumento da psicopatia, das insanidades cometidas por desvios
emocionais mal resolvidos?
Para pensar o ser humano na sua inteireza,
holisticamente, não poderemos ao mesmo tempo projetar essas cobaias de
futuros promissores, de vencedores em tudo. Não é apenas contraditório, é
doente. É um sinal de doença dessa sociedade, de doença também de uma classe
média achatada entre ser e ter, conseguir e não conseguir... E ambicionar
ser o melhor sem o meio termo, sem a média, não é em si uma garantia de topo.
Nem para quem está no topo da cadeia há garantia de topo. Menos
ainda para a classe média. Então... Por que tanta pressa? Por que formar para
deformar?
Outro dia vi uma cena que me chamou atenção. Uma
mesa repleta de adolescentes numa lanchonete de shopping com seus smartphones.
Ninguém conversava com ninguém, mas todos falavam coisas aleatórias,
monossilábicas, de quando em quando, sem desgrudar os olhos de seus
brinquedinhos. Disse isso, porque essa é uma cena que não chama mais a atenção
de ninguém, ela se tornou lugar tão comum que chega a ser boring. Não que os que os adultos também
não façam a mesma coisa. Mas a questão que urge é que, bem sucedidos ou não,
esses adolescentes serão os adultos da minha velhice. Vai me dizer que
você não se preocupa com a sua velhice? Eu me pré-ocupo com os adolescentes e
me preocupo comigo, com o futuro que deles é meu, é nosso.
Não sei aonde e como chegará essa nova
modalidade de ser humano. E entendo que saberemos dele cada vez menos ao
pensar que sabemos cada vez mais. Quanto mais o dominarmos mais ele se
esquivará para dentro de seu abismo particular, quanto mais o doutrinarmos para
o sucesso mais ele se sentirá rejeitado, mal amado, mal integrado... Claro,
estamos fazendo tudo que rege o método dos apressadinhos, menos o que rege a
nossa intuição: amá-los, ficar mais com eles e ouvi-los. É porque amar não vem
em bula, não é mesmo? Não há receita. E, por incrível que pareça, ainda não
inventaram um método mais bem sucedido de chegar à felicidade.
A melhor pedagogia passa por aí e não me
interessa conhecer os números, as estatísticas dos que se julgam donos da
expertise pedagógica da vez. Os números podem sempre ser torturados. Mas
as crianças deveriam ser poupadas disso. Deveriam lhes devolver suas infâncias
roubadas com horas e mais horas livres para não fazerem absolutamente nada.
Porque o nada é o gênesis, é onde a ideia germina, a ciência acontece, a
poesia se mostra, a história se cria. O nada é muito.
E “pra ontem”, professora, só o
passado sem volta. E a vontade do hoje.
Patrícia
Porto
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