Adélia
Prado
Eu, se fosse
governo, subia num tamborete, batia palma e gritava bem alto pra todo mundo escutar:
cala a boca, gente, escuta aqui. Obrigava
todo mundo a ficar quieto primeiro e explicava o meu programa administrativo.
Governo não é Deus, muito pelo contrário, é o tipo da coisa que precisa de
ajuda. Não ia fazer nada sozinho, que eu não sou bobo. Escolhia pra meus
ajudantes só gente que tivesse duas coisinhas à-toa: honestidade e competência.
Feito isso, falava pra eles: faz um levantamento do nosso país, aí, isto é,
varre a casa primeiro. Depois conferia numa assembleia, que não ia ter recesso
enquanto não me dessem, por escrito, quantos meninos sem escola, quanto pai de família sem emprego, quanto homem e mulher que
fosse amarelo, feio, sem
dente, sem saúde,
sem alegria. Me aparecesse tudo anotado no papel.
Bom,
depois dava um descanso de meia hora pras câmaras alta e baixa
e ia de novo
presidir eles arranjarem um meio de acabar com essa tristeza toda, em primeiro
lugar com o problema da comida. Porque vou dizer: passar fome não é coisa pra
gente, não; passar fome é de uma desumanidade tão exagerada, que só pensar bole
com a bile de quem tiver um grão de consciência. Eu não tenho poder nenhum, de
política eu não entendo. Fico falando essas coisas, fico mais ridículo que
galinha na chuva, já viu que dó? Aquele passo bobo, aquele pescoço esticado pra
frente, olha aqui, olha acolá, encharcada na friagem e na lama, sem resolver
nada e, pior que tudo, sem saber de nada. Eu falei de comida, mas tudo tem um
nome só: “Procurai antes o Reino de Deus e Sua justiça”, está escrito na
Bíblia. Pois nosso país assinou a Carta dos Direitos Humanos, não assinou? Nós
somos um país rico, cujo tamanho abarca Europa inteira e ainda sobra terra pra
leilão. Não é assim?
Então, pelo amor de Deus, o que que eu
posso fazer pra ter sossego, pra recuperar umas coisas que desenvolvimento
nenhum nunca mais vai me dar? Olha, antigamente, quando chovia encarreirado
igual tá chovendo agora, eu gostava de
pedir à mãe pra fazer mingau de fubá. A gente bebia e se enfiava debaixo das
colchas pra escutar chuva e ser feliz. Enchente era bom porque o Edgar do Zé
Romão subia na canoa com o pai dele e vinha navegar quase na nossa porta, pra
fazer bonito. Era cobra que aparecia, era gente do centro descendo pra
apreciar. Hoje, não. Tá chovendo eu não tenho gosto de aproveitar, fico
pensando: ô minha Nossa Senhora, tem gente com os treco tudo molhado, sem uma coisa
quente pra forrar o estômago. A situação, entre outras coisas piores, tá
estragando com minha vocação de sambista, fazendo tudo pra me tirar o rebolado,
o que é me matar da pior das mortes. Tou com medo de apanhar
tristeza, encardir de melancolia. Sei que sofrimento neste mundo é fazenda de
todos, mas tendo justiça, meu Deus, ao menos miséria some, ao menos ninguém vai
ter susto de ser preso à toa, de apanhar sem poder dizer essa boca é minha,
explicar, de pé feito um homem, se tem culpa ou não. Culpa eu tenho demais. E
medo. Perdi pai, perdi mãe, fiquei grande com muitos filhos nas costas. Tem
hora minha vontade é chorar de bezerro desmamado meu fundo desvalimento. Tenho
que fazer isso escondido, porque os meninos, quando sofrem o medozinho lá
deles, é atrás de mim que correm, pensando que eu sou forte, só porque sou
grande. Eu não posso ir pro convento, gente com filhos não pode. Tapar os
ouvidos não quero, que é covardia. De morrer eu não gosto. Francamente eu não
sei o que fazer, eu não sei mesmo.
Se eu fosse o governo ou o chefe dos bispos do Brasil, baixava um
decreto pra funcionar desde o mais perdido cruzeiro de roça até a catedral mais
chique, desde as prefeituras mais mixas até o palácio dos ministros. Que se
estudasse até descobrir o que Deus quis dizer exatamente, quando inspirou o
profeta a escrever no Livro Sagrado esta oração mais linda que se reza em
vésperas do Natal: “Derramai, ó céus, das alturas o vosso orvalho, e as nuvens
façam chover o Justo.” Porque Ele veio e virá sempre à palha e ao cocho para
ser compassivo. Mas nós o que estamos fazendo pra ajudar?
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