Ela nasceu no interior da Paraíba e tinha uns olhos gigantes, de um verde contrastante com a terra seca do sertão. Corpo de recém-nascido e já maltratado pela seca e pela fome, pesava cerca de três quilos aos sete meses de vida. Desenganada pela sorte, desnutrida, castigada pela natureza e pela desnatureza social que aparta os excluídos, foi assim que um dia chegou às nossas vidas. Não tinha roupa, não tinha certidão de nascimento, não tinha um nome sequer... Chegou num ônibus da Itapemirim com outros retirantes, retirados, desnutridos, refugiados de uma guerra sem fim contra a miséria e o abandono.
Chegou à nossa casa usando um saco plástico como fralda. Deixada para morrer pelo desengano da vida, chegou abandonada como tantas outras crianças, filhas e filhos do mesmo destino de nascimento e que por teimosia de uma força inexplicável, sobrevivem aos sacos jogados ao lixo, aos córregos e rios; crianças, bebês por vezes deixados, lançados pelas mãos daqueles dos quais se esperariam o zelo e a proteção. Sobreviventes do abandono e da morte.
Muitas crianças ficam abandonadas ao destino dos que se retiram da miséria, isso quando todas as esperanças já esvaídas tornam o destino implacável e sentenciam que “não há outro jeito”, isso quando a água é já por demais salobra e a fome aponta apenas para duas direções: a morte ou a estrada. A salvação é quando a estrada vem com notícia de carta: emprego, casa e comida. Notícia que se não chega, aumenta ainda mais a seca, prevendo que o sol não vai baixar... O gado morre, o leite seca. As crianças choram, famílias inteiras pedem socorro e veem seus filhos e filhas fugirem da morte que chega a galope, desembestada. Que nome pode ter a vida então além de Severina?
A adoção para nossa família teve como nome: “vida” e chegou como processo de descobrimentos que se deu de dentro para fora. Alice, nos seus sete meses de idade, foi deixada em nossa casa, trazida pelas mãos de sua mãe biológica, mulher em luto e desespero silencioso. Desde o início foi impossível não dar acolhimento àquela criança, foi impossível não amá-la de forma inexorável, dada a sua força de viver e sua vontade inata em contradizer seu destino de origem. E assim nossa família foi para Alice só cuidados e atenções. Entre feridas tratadas, convulsões, verminoses, sorrisos, choros, uma construção se instalava também dentro de nós - a cada dia, a cada etapa vencida, a cada preconceito interno também vencido. Nossa alma se reconstruía junto com a reinvenção da adoção. Adoção em doação. Para adotar uma criança é preciso estar aberto a uma preparação cuidadosa e generosa que diz respeito a muitos ensinamentos de vida. É preciso aprender várias delicadezas da partilha, partilhando o coração sem fazer reservas. É preciso sentir com o coração. E para sentir com o coração é preciso então estar aberto a uma verdadeira solidariedade, pois uma criança adotada é uma nova forma de narrativa e ainda assim é parte da mesma narrativa de mundo que nos torna irmãos, família, pais e filhos do humano, da mesma humanidade.
Foi urgente para nossa família aprender que o preconceito era a maior peste que podia assolar a terra e que o alimento do corpo era também o alimento da alma, o pão nosso de uma conquista diária, de uma confiança mútua que necessita de zelo, respeito, tolerância e reconquista contínua. E mais profundo que o alimento do corpo, o alimento da alma era uma reconstrução sem fim, uma aprendizagem cotidiana sobre o outro e sobre o si mesmo. Nós nos unimos pela adoção em torno daquela existência frágil que precisava de muitos alimentos, nos unimos como nova família formada no elo mais forte entre os seres humanos: a necessidade legítima de vida digna, respeitada nos seus direitos civis, nos seus direitos prioritários.
Assim fomos crescendo unidos, multiplicando nossas forças fraternas contra o egoísmo e os estigmas, contra qualquer pretensão do determinismo absurdo que aparta as cidades em guetos, que isola homens, mulheres e crianças em formas injustificadas de sobrevivência. E Alice, fruto da adoção que transforma, ao crescer conosco, nos ensinava sobre uma nova forma de irmandade, sendo capaz de nos dar ainda mais amor, além daquele que pensávamos receber. Adoção é doar em ação e receber no retorno a beleza de vidas transformadas.
O processo de adoção de Alice perdurou. Havia toda uma complexidade que se dá mesmo num processo que envolve tantas camadas de entendimento. Nesse processo transita leis, responsabilidades e uma nova postura familiar diante do mundo. É preciso então assumir o lugar dos que zelam e priorizam a vida humana. E sair do egoísmo é tarefa difícil, é um novo olhar sobre a própria natureza que nos habita.
Alice nos trouxe uma nova constituição familiar. Generosamente, uma criança nos doava aquela ação de compreender do outro a sua inteireza nas suas necessidades e suas potencialidades. Coração do nosso coração, parte da nossa alma, Alice transformou nossas trajetórias quando teve sua trajetória transformada. A história da nossa família modificada pela adoção se assemelha a muitas histórias de outras tantas famílias brasileiras. Trata-se de uma aprendizagem rara: a do conhecimento do humano, aprendizagem que transcende. E isso se dá quando compreendemos mais e mais – a cada dia – observando, constatando que o maior tesouro de uma pessoa, de um ser que vive, é saber que pode criar e reinventar a sua própria história criando e reinventando a histórias de muitos. A nossa história é, sem dúvida, a história de Alice e a história dela faz parte da trajetória de uma família reinventada pela adoção.
A vida de um ser humano simplesmente não pode ser reduzida a uma coleção de fragmentos aleatórios, pois se trata de uma narrativa única e insubstituível, como a íris dos olhos, uma mandala de desafios e descobertas. Cada um de nós é uma narrativa singular e cada um de nós vai se tornando com o tempo um ser também coletivo, plural.
Toda criança tem direito a um nome e uma nacionalidade. Está na Constituição. Toda criança tem direito a uma família. Está na história de cada um. Toda criança tem direito a um nome. E é o nome que nos identifica como “cidadãos”, como portadores de uma identidade. É a partir do “nome” que nos tornamos sujeitos sociais, protagonistas de uma narrativa própria, e sujeitos históricos desta narrativa. Ainda assim “o nome próprio” por si só não está capacitado a garantir todos os direitos necessários à “vida-existência digna” de uma grande parcela da humanidade. Essa crueza do “nome que não nos qualifica” e que faz surgir tantos “abandonos”, é que pode e deve nos mobilizar na busca por encontrar “nomes próprios” e “nomes coletivos” que desfaçam o nó da injustiça social, histórica, desfazendo o nó do descaso, para devolver a tantas crianças brasileiras, através de uma identificação individual e coletiva, o direito legítimo de viver plenamente todos os seus direitos. É como diz um provérbio africano: “é preciso uma comunidade inteira para criar uma criança”. É preciso uma família, uma comunidade, um país inteiro para criar uma criança.
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